A "normalização da África do Sul" está a começar ao fim de 30 anos de democracia

por Lusa

O presidente do Institute for Security Studies (ISS), em Pretória, Jakkie Cilliers, considera que, 30 anos depois do fim do apartheid, se começa agora a ver "a normalização da África do Sul", afirmou à Lusa.

"Tivemos muita sorte e fomos abençoados com o caráter e a política de Nelson Mandela, que foi um reconciliador, trouxe o conceito de Nação Arco-Íris para a África do Sul, mas era inevitável que ressurgissem os desafios profundos do país, os desafios do desenvolvimento, os desafios da desigualdade", afirmou o fundador do instituto de análise sul-africano.

Aconteceu na África do Sul o mesmo que "em quase todos os países africanos pós-coloniais", acrescentou Ciliers: "Começámos com grandes esperanças, mas acabámos por descobrir que os libertadores não são muito diferentes dos opressores e que a civilidade, a liberdade, a democracia, o desenvolvimento só virão quando nos libertarmos também dos libertadores e conseguirmos normalizar o corpo político" do país.

O Dia da Liberdade na África do Sul comemora-se a 27 de abril e este é o 30.º aniversário da data que assinala as primeiras eleições multirraciais no país -- que decorreram entre 26 e 29 de abril de 1994. Não obstante, "embora 30 anos seja muito tempo, só começamos agora a ver a normalização" do país, que irá a eleições no final de maio, disse o analista.

Celliers acredita que o Congresso Nacional Africano (ANC, na sigla em inglês) deverá voltar a vencer as eleições nacionais e Cyril Ramaphosa manter-se-á por mais cinco anos Presidente da África do Sul.

Porém, pela primeira vez em 30 anos, o ANC não deverá ultrapassar os 50% dos votos que lhe permitiriam governar sozinho. Os resultados determinarão com que partido ou partidos se irá aliar, quer a nível nacional como regional, sobretudo em províncias importantes como Gauteng e KwaZulu-Natal.

O que é certo, no entanto, sublinhou Cilliers, é que o próximo dia 29 de maio marcará o "início de uma viagem rumo à transição", que apenas se completará "realmente" nas próximas eleições em 2029.

Várias circunstâncias penalizaram o ANC e colocaram o partido na trajetória descendente, que se vem acentuando na última década. A corrupção emerge como explicação imediatamente, mas Celliers olhou em primeiro lugar para outra: "competência". Ou a falta dela.

"O ANC simplesmente não tinha a capacidade de gerir uma economia relativamente moderna, e as suas políticas de empoderamento económico dos negros, de distribuição de quadros, de distribuição de terras, etc., que são inerentemente boas abordagens políticas, foram todas postas de lado devido aos desafios internos que o partido enfrentou", afirmou o fundador do ISS.

O ANC dos anos 90 e do início deste século beneficiava de "uma onda de apoio, mas não de uma base organizativa" e teve que se "dotar de uma pegada nacional" que não tinha, segundo o analista.

Isto levou-o a estabelecer parcerias com organizações poderosas -- como a maior confederação sindical do país, a COSATU -, algumas das quais "muito corruptas", cujos dirigentes alcançaram assim o poder. Foi também assim que se ligaram competência, a falta dela, e a corrupção.

"A nossa política para transformar a África do Sul, para dar poder às empresas e às pessoas negras, a ação afirmativa, etc., tudo isto correu terrivelmente mal e o que se verifica hoje no país é que a representatividade é muito mais importante do que qualquer outra coisa", afirmou.

Ainda assim, "o ANC conseguiu criar uma classe média negra através da função pública e do empoderamento económico dos negros, e isso é importante, mas em contrapartida não investiu nos fatores de crescimento e de igualdade, que são a educação, a saúde, etc.".

"Foi aí que a África do Sul falhou verdadeiramente", afirmou. "Perdemos 30 anos porque, se queríamos construir a equidade, o que o ANC fez foi concentrar-se apenas nos resultados e não nos fatores de produção".

"Esse é, a longo prazo, o maior fracasso do ANC, o facto de não termos sistemas de educação, saúde e inovação de alta qualidade, e de termos uma burocracia completamente incapaz de avançar", resumiu Celliers.

O outro fracasso é o combate à corrupção, que atingiu as mais altas esferas do poder em vários momentos nos últimos 30 anos. O analista reconheceu que "a África do Sul tem um enorme problema de corrupção", mas sublinhou também que "os seus tribunais aguentaram, os meios de comunicação social aguentaram, a Constituição aguentou, as instituições fundamentais da democracia não falharam" e o país terá já "ultrapassado o pior".

"Durante o mandato de Ramaphosa, foram realizadas muitas reformas, nomeadamente de caráter técnico, por exemplo, os esforços para criar uma função pública mais profissional, as parcerias público-privadas, o que está a acontecer na Eskom [colossal injeção de capital, na ordem dos 20 mil milhões de euros em 10 anos, para modernizar a companhia elétrica sul-africana], que, a seu tempo, terão um enorme impacto", elaborou.

"Em muitos aspetos", concluiu, "a África do Sul virou a esquina".

"Estamos no início de uma mudança fundamental no quadro político, por isso, os próximos anos vão ser muito interessantes", prevê Jakkie Cilliers.

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