Abril: Refugiados, uma crise humanitária anunciada

Abril de 2015. Num só mês, contam-se pelo menos 1.100 mortos em cinco diferentes naufrágios no Mar Mediterrâneo de migrantes que viajavam desde o Norte de África e tentavam chegar à Europa em barcos de borracha. O Velho Continente fica em choque, mas nem imagina que este é o prenúncio de uma crise brutal e sem precedentes, a maior crise humanitária desde a II Guerra Mundial. Com o decorrer do ano, outros pontos sensíveis de passagem juntam-se à rota mediterrânea e afiguram um problema que a Europa está longe de conseguir resolver.

A tragédia não consistia, de todo, uma novidade. Há anos que o Mar Mediterrâneo era palco para tentativas de travessia por migrantes vindos sobretudo do Norte da Europa.

Até este mês, o registo do maior naufrágio era de Lampedusa, onde 360 migrantes perderam a vida em 2013. Em julho desse mesmo ano, o Papa Francisco escolheu de forma simbólica a ilha italiana como destino para a primeira viagem do seu pontificado, a fim de “chorar os mortos que ninguém chora”. Nessa altura, a guarda costeira italiana criava a Operação Mare Nostrum e a União Europeia prestava auxílio através da Operação Frontex.

Países como o Reino Unido mostraram resistência ao dispor os fundos para o programa comunitário, argumentando que o reforço da segurança constituiria um incentivo a que um maior número de pessoas procurasse a travessia pelos corredores de traficantes humanos e embarcações frágeis. Por essa razão, a europa decidiu, em outubro de 2014, não renovar a operação Mare Nostrum que durante um ano salvou a vida a mais de 100 mil pessoas.

Entre 2000 e 2014, a Organização Internacional para as Migrações contabiliza mais 22 mil mortos e desaparecidos.
Mar (e Terra) da vergonha
As travessias desde sempre aconteceram, fruto da tentação de procurar um futuro mais promissor, longe da miséria, guerra e conflitos sectoriais que caracterizam o Norte de África e a região do Médio Oriente. Mas desde 2011 que o número de migrantes que tentam chegar à Europa cresceu exponencialmente, em resultado da instabilidade causada pelas Primaveras Árabes e os conflitos que se lhe seguiram. Um deles, a guerra civil na Síria, continua a dar que fazer a responsáveis humanitários e à ordem política internacional, com a agudização dos confrontos em cinco anos de conflito e a abertura de um terreno fértil para o auto-proclamado Estado Islâmico.


Luís Filipe Fonseca, Cristina Gomes - RTP (20 de abril)

Em 2014, regista-se um aumento por volta de 265 por cento de migrantes que procuram a Europa, vindos sobretudo da Síria, Eritreia e Afeganistão (organizações estimam que 282.500 migrantes chegaram à Europa por vias ilegais).

Segundo a Agência da ONU para os Refugiados, 170 mil pessoas foram resgatadas das águas do Mediterrâneo só em 2014.

Curiosamente, a rota do Mediterrâneo perde força em 2015 e dá lugar a novos caminhos no fluxo de migração. Ainda assim, foi um ano mortífero nas costas europeias a Sul, quer no Mediterrâneo Ocidental, perto das ilhas italianas e, mais tarde, no Mar Egeu, entre a Turquia e a costa grega.

A 19 de abril de 2015, a Europa treme, comove-se, arrepia-se, como muito irá acontecer ao longo do ano.

Talvez pela força arrebatadora dos números, é coagida a agir prontamente. Num único naufrágio, neste dia fatídico, a 96 quilómetros da costa líbia e a quase 200 quilómetros de Lampedusa, terão morrido entre 700 e 950 pessoas, a maior perda de vidas numa só travessia. Dias antes, 400 pessoas tinham morrido numa tragédia semelhante. O Mar Mediterrâneo é, como nunca, um mar de vergonha para o Velho Continente.

Como um problema adormecido, as autoridades, comunicação social, opinião pública, viram as atenções a conhecer o drama que até então fustigava sobretudo as ilhas Pelágias e a região de Sicília. A União Europeia promete num Conselho Europeu extraordinário estabelecer o acolhimento de 40 mil refugiados.

Os migrantes descobrem novos percursos. Na Hungria, a primeira brecha nos pilares comunitários, o primeiro sinal de impaciência. Viktor Orban, o primeiro-ministro conservador, anuncia a suspensão da convenção de Dublin e inicia logo em junho a construção de um muro com quatro metros de altura ao longo da fronteira com a Sérvia.

Budapeste é cidade apetecível para todos os que chegam pela rota Este; é o primeiro país próximo dos Balcãs que pertence à zona Schengen, de livre circulação comunitária. A cidade encerra a Estação Ferroviária central durante dias para evitar a chegada de mais gente que procura um bilhete até ao centro e norte da Europa. A Alemanha é o destino predileto da grande maioria.

Em Calais, no norte de França, a morte de dois migrantes que tentaram usar o Eurotúnel para chegar ao Reino Unido, leva a Europa a conhecer “A Selva” campo de refugiados de condições deploráveis onde se espera constantemente por uma oportunidade para alcançar outra terra prometida no Canal da Mancha. Numa autoestrada da Áustria, uma descoberta macabra: 71 cadáveres são encontrados num camião frigorífico abandonado, com matrícula húngara. As vítimas tinham atravessado ilegalmente a fronteira entre a Eslováquia e a Hungria.

No início de setembro, a fotografia de uma criança síria afogada, sem vida, numa praia de Bodrum, na Turquia, traz em definitivo a questão dos migrantes para manchetes dos jornais de todo o mundo. A morte de Aylan Kurdi comove a Europa e marca uma viragem significativa na forma de abordar a crise de refugiados por parte dos responsáveis europeus.



Em novembro, a Macedónia começa a construção do seu próprio muro na fronteira com a Grécia e procede à seletividade religiosa, deixando passar apenas os refugiados vindos da Síria. A questão migratória é um fogo com várias frentes que galga uma Europa sem instrumentos para o travar.
Um milhão
Com o fim do ano chegam os balanços oficiais. A Organização Internacional para a Migração das Nações Unidas estima que pelo menos 1.005.504 migrantes e refugiados tenham viajado para a Europa nos últimos 12 meses, o que representa cinco vezes mais do que os registos do ano passado. De todos os requerentes de asilo, uma em cada duas pessoas tem nacionalidade síria.

Afegãos, iraquianos, eritreus, paquistaneses, nigerianos e outras nacionalidades também se fazem representar entre as mais recentes chegadas, mas em menor número.

Segundo o mesmo relatório da organização, quase todos estes migrantes chegaram de barco (818 mil fizeram a travessia por mar), pelo menos 3700 morreram. A rota do mediterrâneo foi a mais mortífera, onde se contabilizam 2889 mortes. No mar Egeu, entre a Turquia e a Grécia, morreram 700 pessoas.

Se fugir para a Europa é correr risco de vida, nada está assegurado aos que cá conseguem chegar. Líbano, Turquia e Jordânia são alguns dos países-fronteira com a Síria, com campos de refugiados completamente lotados e com escassas condições de vida.

No Líbano, um quinto da população total é refugiado da guerra no país vizinho. Entretanto, a Turquia usa a questão como moeda de troca nas negociações com os líderes comunitários. Mas na Europa, onde procuram marcas civilizacionais diferentes nas rotas de passagem, as condições não são muito melhores, a vontade de receber também não. Importa recordar que, perante este milhão de pessoas que deu entrada nas fronteiras, Bruxelas apenas acordou com os países da União Europeia a redistribuição de 160 mil pessoas. Os restantes poderão ser obrigados a regressar a casa.


João Botas, Guilherme Brízido - RTP (4 de novembro)

A desorganização e a ausência de esforços e cooperação perante uma crise humanitária como a Europa já não via desde a II Guerra Mundial deixa marcas e promete regressar às agendas políticas e mediáticas de 2016.

Logo em abril e na sequência dos primeiros naufrágios, Joseph Muscat, o primeiro-ministro de Malta comparava a situação dos migrantes aos genocídios de há 70 anos, deixando o aviso: “Assistimos a uma crise humanitária com proporções épicas. Se a Europa e a comunidade internacional continuarem a fazer vista grossa, seremos julgados da mesma maneira”.

À crise económica e social acresce a crise de migrantes. As ilhas gregas atingem o ponto de saturação e os centros de acolhimento, contrastam com o turismo da região. Na terça-feira, polícia e cerca de 1.500 migrantes envolveram-se em confrontos na ilha de Kos. De acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, 124 mil imigrantes ilegais desembarcaram na Grécia nos sete primeiros meses de 2015.