Adeus Afeganistão. O que resta de 20 anos de guerra

por Graça Andrade Ramos - RTP
Dois afegãos limpam estilhaços de vidro das janelas da sua casa em Cabul, após um atentado suicida a 21 de abril de 2021. O futuro do país parece igualmente estilhaçado. Reuters

Os Estados Unidos lançaram a operação Liberdade Duradoura no Afeganistão após os ataques de 11 de setembro em 2001. O objetivo era afastar do poder os radicais islâmicos conhecidos como Taliban, e desmantelar a Al Qaida, a poderosa rede jihadista responsável pelos ataques e protegida pelos Taliban, além de capturar ou de matar o seu líder, Osama Bin Laden.

Vinte anos depois, o presidente Joe Biden, eleito em 2020, anunciou a 15 de abril de 2021 a retirada das 2.500 a 3.500 tropas americanas remanescentes no país, a iniciar este sábado, dia 1 de maio, conforme um calendário já previsto sob o seu antecessor, Donald Trump.

Deverá estar concluída, simbolicamente, a 11 de setembro. Todo o equipamento militar será deixado para trás, um prémio de consolação ao Governo de Cabul, por um conflito que deixou o país à beira da desagregação e que deu muita despesa aos norte-americanos.

Na hora do início da despedida faz-se o balanço destes 20 anos.

E questiona-se. Valeu a pena?
O custo em vidas
Entre outubro de 2001 e meados de abril 2021, pelo menos 47.245 civis afegãos e 2.442 soldados americanos morreram em combate ou assassinados em atentados e 20.666 soldados dos EUA ficaram feridos, referem o Departamento de Estado dos EUA e o projeto Custos da Guerra da Brown University.

Apesar de o Governo afegão manter secreto o número das perdas no arrastar do conflito, para manter o moral, o mesmo projeto estima que de 66.000 a 69.000 das tropas afegãs tenham sido mortas. Também estimadas, as 3.800 vítimas mortais entre os contratados de empresas de segurança privadas. O Pentágono não faz essas contas.

Já a coligação de 40 países que apoiou o esforço de guerra e treinou as tropas afegãs ao longo dos anos, perdeu cerca de 1.144 membros do pessoal enviado para o país. O conflito custou ainda a vida a 72 jornalistas e a 444 trabalhadores humanitários, referem fontes das Nações Unidas.

Em 20 anos o país perdeu igualmente 2.7 milhões de habitantes, que fugiram da guerra e são agora refugiados e migrantes noutros países, com o Irão, o Paquistão e a União Europeia a liderar a lista.

Cerca de quatro milhões, entre os 36 milhões de afegãos contabilizados, estão deslocados dentro do próprio país.
O regresso dos Taliban
Desde o início das negociações de paz entre Cabul e os Taliban no outono passado no Qatar, os atentados à bomba e a tiro proliferaram. O acordo entre ambos parece ser uma miragem; e uma ofensiva militar Taliban contra as forças de segurança governamentais uma certeza.

O Afeganistão poderá mergulhar na guerra civil declarada, com a retirada das forças ocidentais, já que os países da NATO e da Aliança Internacional formada para combater o terror islamita na sua origem, irão também retirar os seus cerca de 7.000 soldados, à falta de apoio logístico norte-americano.

Um dos objetivos da ofensiva Liberdade Duradoura era o afastamento dos Taliban do Governo afegão e a sua substituição por governantes próximos do Ocidente. Essa parte da missão ficou cumprida em poucos meses após a invasão americana. Os bombardeamentos aéreos garantiram a queda dos Taliban e a fuga dos militantes da Al Qaida para as áreas remotas do vizinho Paquistão.
A caça a Bin Laden levou uma década, mas o líder islamita acabou morto durante a noite no seu esconderijo paquistanês secreto a 100 quilómetros de Islamabad, às mãos de Navy Seals da Marinha dos EUA.

Entretanto, os Taliban reorganizaram-se, recuperaram influência e controlam atualmente a metade sul e leste do país, em grande parte graças a fundos provenientes do cultivo e do contrabando de ópio, que lhes permitem comprar armas e afirmarem-se como um Estado dentro do Estado.

O país arrisca desagregar-se devido também à corrupção de Cabul e à desorganização e competição entre os diversos senhores tribais afegãos, velhos aliados norte-americanos da guerra contra a União Soviética e a quem Washington recorreu para instaurar um novo Governo.

Só um acordo entre Cabul e os Taliban poderá abrir caminho a eleições e talvez à democracia. Com o país mergulhado na miséria e despovoado de milhões de homens mais jovens que emigraram, esse futuro não parece provável.
Biliões e biliões...
Os EUA já gastaram 2.26 biliões de dólares numa enorme multiplicidade de despesas devido à guerra e ao esforço de reconstrução do Afeganistão, refere o Custos de Guerra. Este não era um objetivo inicial das operações mas, logo em 2002, os EUA e a NATO começaram a contribuir para modernizar o país.

O Inspetor geral especial para a Reconstrução do Afeganistão (SIGAR), calcula em 143 mil milhões de dólares os investimentos de Washington.

Só o treino, equipamento e financiamento das forças de segurança afegãs custaram 88 mil milhões.

Entre o sonho e a realidade no Afeganistão em 2021 Foto - Reuters

Infra-estruturas como barragens, auto-estradas, hospitais e escolas requereram 36 mil milhões de dólares e o apoio humanitário aos deslocados 4,1 mil milhões. A campanha de combate à produção do ópio e à venda de heroína custou outros 9.000 milhões.

A própria guerra custou até 2020, de acordo com os relatórios do Departamento de Estado norte-americano, 815.7 mil milhões de dólares, entre custos logísticos e operacionais ao longo de 19 anos, incluindo veículos terrestres e aéreos, combustível e munições.

Os EUA pediram emprestados muitos destes fundos e terão pago entretanto 530 mil milhões de dólares em juros. Os cuidados médicos a veteranos custou-lhe até agora 296 mil milhões de dólares, de acordo com o Custos da Guerra. Ambas as despesas irão prolongar-se no tempo, muito depois de 11 de setembro.
...e miséria geral
O SIGAR afirma que grande parte dos investimentos em infraestruturas se perdeu num escoadouro sem fundo.

Escolas e hospitais mantêm-se vazios, barragens e estradas degradam-se sem manutenção. Em vez de reconstrução e modernização, a corrupção instalou-se, com os poderes locais e centrais apoiados pelo Ocidente a encherem os bolsos e a perderem legitimidade junto das populações.Os lucros da produção e do contrabando de ópio oscilavam em 2019 entre os 1.2 e os 2.1 mil milhões de dólares, superando as exportações legais. Cerca de 14 milhões entraram em cofres Taliban.

Apesar de ganhos quanto à queda da mortalidade infantil para metade, ao aumento da esperança de vida, de 56 para 64 anos, e da literacia em oito por cento, para 43 por cento da população, ou quanto ao alargamento de confortos como água potável a 89 por cento da população urbana (só 16 por cento lhe tinham acesso antes da guerra), a garantia de que irão manter-se é quase nula.

Esforços e investimentos aparentemente inúteis. O desemprego ronda os 40 por cento e o índice de pobreza atinge os 47 por cento, quando em 2007 era de 36 por cento, de acordo com o Banco Mundial. Quase metade da população vive com menos de 1.90 dólares por dia, abaixo do nível de pobreza. Milhões ultrapassam-no por muito pouco. A ONU e a Cruz Vermelha dizem que metade das crianças afegãs corre risco de fome.

A estabilidade mantida pelas tropas ocidentais e os avanços dos direitos das mulheres, incluindo na representação política e no acesso a Educação e na queda de 17 por cento nos casamentos infantis, irão certamente esfumar-se em poucos anos com a retirada das tropas.

Já a Al Qaida, mesmo tendo perdido o líder carismático, cujo corpo foi lançado ao mar - ou talvez não - não desapareceu, mas infiltrou-se por dezenas de países, fazendo alastrar a sua influência e provocando dezenas de conflitos.

Na hora do balanço, os ganhos afiguram-se escassos e instáveis e os custos astronómicos, para um único objetivo – a vingança contra Bin Laden – plenamente conseguido.

“Investimos demasiado para o pouco que podemos mostrar”, refere um analista da fundação Century, de Washington.

Um epitáfio comum à maioria das guerras.

C/Association Press
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