Afeganistão. Joe Biden tenta justificar caos da retirada e distribui culpas

por RTP
"Creio que é a decisão correta. É uma decisão sensata e a melhor decisão para a América" declarou o presidente democrata, de 78 anos, que assume a responsabilidade pela retirada das tropas na data combinada. EPA

O presidente dos Estados Unidos anunciou que o papel do país como "construtor de nações" acabou e que os Estados Unidos já não têm interesse estratégico no Afeganistão. Ao coro de críticas que descreviam a operação de retirada como uma "saída caótica", Joe Biden respondeu que foi um extraordinário "sucesso logístico" e que a alternativa a ficar no país seria "agravar o conflito".

No último dia do prazo negociado com os talibãs para a retirada militar do Afeganistão e após a saída do último soldado americano do país, o Joe Biden veio, uma vez mais, justificar os seus motivos para por fim à mais longa guerra em que os Estados Unidos participaram.

Esta guerra “devia ter acabado há muito”, argumentou o presidente Biden na noite de terça-feira, acrescentando que aos Estados Unidos restavam duas opções: “sair ou agravar o conflito”.

Num discurso em direto na televisão a partir da Sala de Jantar da Casa Branca, o presidente Biden explicou que Washington vai continuar a combater os militantes extremistas no Afeganistão que possam ameaçar a segurança dos Estados Unidos. No entanto, as tropas vão deixar de ser utilizadas para tentar construir sociedades democráticas em lugares onde nunca estas nunca existiram.

"Esta decisão sobre o Afeganistão não é apenas sobre o Afeganistão. É sobre o fim de uma era de grandes operações militares para reconstruir outros países", declarou.

Ao longo dos 20 anos da presença militar no Afeganistão, morreram 2.500 soldados americanos e cerca de 240 mill afegãos. Além dos números de vítimas mortais, Joe Biden citou as faturas da guerra: gastaram-se cerca de dois biliões de dólares ou “300 milhões de dólares por dia durante duas décadas”.
Caos justificado, prazo para cumprir e distribuição de culpas
Aos críticos da tumultuosa operação de retirada, correntemente apelidada de atabalhoada e humilhante, Joe Biden respondeu que esta foi um “sucesso logístico” e argumentou que se a operação tivesse começado com semanas de antecedência, teriam continuado a verificar-se cenas de caos.

A decisão de retirar granjeou desaprovação tanto entre os cidadãos americanos, como entre os políticos republicanos e até democratas, bem como entre as nações aliadas da coligação. Segundo a mais recente sondagem da Reuters e Ipsos, 51 por cento dos americanos estão contra a retirada e 38 por cento estão a favor.

Esta não foi uma decisão arbitrária”, “foi delineada para salvar vidas”, declarou. “Assumo a responsabilidade pela decisão. Agora, alguns dizem que deveríamos ter começado as evacuações em massa e perguntam se isto poderia ter sido feito de um modo mais ordeiro, discordo respeitosamente”, acrescentou.

“Imaginem, se tivéssemos iniciado a evacuação em junho ou julho, trazendo milhares de militares americanos e retirando mais de 120 mil pessoas em plena guerra civil… também teria havido caos no aeroporto”, disse Joe Biden, para assim justificar a decisão de cumprir o prazo acordado pela anterior administração norte-americana com os talibãs e, deste modo, rejeitando os apelos de líderes da coligação, como o primeiro-ministro britânico Boris Johnson.

Na perspetiva de Joe Biden, a saída apressada deveu-se à incapacidade do Governo afegão lutar contra os avanços dos talibãs e remeteu para o acordo delineado pelo seu antecessor na Casa Branca, Donald Trump.

O acordo delineado pela administração Trump autorizou “a libertação de 5 mil prisioneiros no ano passado, incluindo alguns dos senhores da guerra talibã, entre os quais (alguns) assumiram controlo”. “Quando entrei em funções, os talibãs tinham a mais forte posição militar desde 2001, controlando ou lutando em quase metade do país”, afirmou.
Duas centenas de americanos permanecem no Afeganistão
De acordo com as autoridades americanas, ficaram no Afeganistão entre 100 a 200 cidadãos dos Estados Unidos “com alguma intenção de partir”, bem como milhares de afegãos que colaboraram com os militares durante as duas décadas de presença do país.

Aos jornalistas, Biden referiu que a maior parte do que ficaram têm dupla cidadania e anteriormente comunicaram intenção de permanecer no país por motivos familiares, tendo mais tarde mudado de ideias.

Para os americanos que ficaram não há prazo limite. Permanecemos comprometidos em retirá-los de lá se assim o desejarem”, garantiu.

No discurso, Joe Biden referiu que 90 por cento dos americanos que quiseram regressar conseguiram-no. Mais tarde, a Casa Branca corrigiu o número e referiu serem 98 por cento os que conseguiram regressar.

O secretário de Estado Antony Blinken é apontado como o principal ponto de contacto dos esforços diplomáticos para garantir um regresso seguro dos americanos, parceiros afegãos ou estrangeiros que ainda queiram deixar o Afeganistão.

Joe Biden notou ainda que a comunidade internacional não perdoará aos talibãs se quebrarem a promessa de autorizar as viagens. “Os talibãs assumiram a compromisso público, transmitido pelas televisão e rádios em todo o Afeganistão, de uma passagem segura para qualquer pessoa que queira partir, incluindo os que trabalharam ao lado dos americanos”, lembrou.

Temos poder para garantir que estes compromissos vão ser cumpridos”, ameaçou. Biden referiu ainda que a sua administração interveio 19 vezes desde março para que cidadãos americanos no Afeganistão pudessem deixar o país. Desde o início das pontes aéreas, foram identificados cinco mil cidadãos que queriam ficar, mas este número está agora reduzido a cerca de 200 pessoas.

Mais de 123 mil pessoas foram retiradas de Cabul por via aérea ao longo das últimas duas semanas. No entanto, milhares de afegãos que trabalharam com as forças internacionais não conseguiram chegar ao aeroporto.
Celebrações em Cabul não incomodam e aviso ao ISIS-K
Ao início desta terça-feira, logo após a saída do último avião norte-americano, os talibãs celebraram a vitória com foguetes, desfilaram pela pista do aeroporto de Cabul com armas das tropas americanas, dispararam tiros para o ar e desfilaram caixões cobertos com as bandeiras dos Estados Unidos e da NATO.

No entanto, o porta-voz do Pentágono disse não estar preocupado com o equipamento militar nas mãos dos talibãs. O “ambiente de ameaça” continua elevado e os Estados Unidos estão mais preocupados a possível ajuda dos talibãs para lidar com o perigo do ISIS-K dentro do Afeganistão.

O presidente Biden deixou ainda um aviso ao grupo afiliado do Estado Islâmico, que reclamou responsabilidade pelo ataque de quinta-feira que vitimou mais de 157 civis afegãos e 13 soldados americanos. “Ainda não acabámos convosco”, disse.

“Enquanto comandante-em-chefe, acredito firmemente que a melhor maneira de proteger a nossa segurança é por meio de uma estratégia dura, implacável, focada e precisa, que persegue o terror onde ele está hoje. Não onde estava há duas décadas”, concluiu Joe Biden.

Pouco depois do discurso de Biden, o Senado aprovou legislação para auxiliar os americanos que regressam do Afeganistão, enquanto os países da União Europeia querem aumentar a ajuda aos países da região, bem como ao Afeganistão.

Na manhã de quarta-feira, centenas de pessoas formava longas filas às portas dos bancos. As agências noticiosas começam ainda a divulgar relatos do reforço da lei islâmica, a sharia, como o espancamento de mulheres nas ruas. O aeroporto de Cabul continua fechado e os talibãs esforçavam-se por manter edifícios do governo e hospitais a funcionar.
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