Apple ameaçou banir Facebook devido a abuso e tráfico de trabalhadores

por RTP
Facebook está no epicentro de um grande escândalo Reuters

O Facebook encontra-se em nova encruzilhada de escândalos. Em documentos recolhidos pela Associated Press ficou a saber-se a Apple ameaçou banir a rede social da sua loja de aplicações depois de preocupações com o uso da plataforma para a contratação ilegal de empregadas para o Médio Oriente.

A rede social, liderada por Mark Zuckerberg, teve conhecimento da situação e tentou controlá-la. Em causa estavam anúncios feitos na plataforma para a venda e compra de empregadas asiáticas e africanas para trabalhar no Médio Oriente. A Apple ameaçou retirar o Facebook da sua loja mas acabou por manter tanto o Facebook com o Instagram nas suas plataformas.

No entanto, a ação do Facebook parece ter tido efeitos limitados. A pesquisa pela palavra "empregadas" em arábico (Khadima) mostra inúmeras contas com fotografias de mulheres africanas ou do sul da Ásia com idades e preços associados. A rede social admite que é muito difícil lutar contra as leis laborais de alguns países.

Um dos documentos relata: “Na nossa investigação, empregadas domésticas queixam-se frequentemente de ficarem fechadas em casas, passarem fome e serem forçadas a aumentar os seus contratos de forma indefinida, sem serem pagas, e repetidamente vendidas a outros empregadores sem o seu consentimento”.

“Também descobrimos que estas agências de recrutamento não dão importância a casos mais sérios, como assédio sexual, preferindo não ajudar as mulheres”, pode ler-se no documento recolhido pela Associated Press.

A rede social respondeu à agência e afirmou ter levado o problema a sério apesar do aumento contínuo de anúncios que exploram empregados estrangeiros no Médio Oriente.

“Proibimos de forma inequívoca a exploração humana. Temos combatido o tráfico de pessoas na nossa plataforma por muitos anos e o nosso objetivo continua a ser o de impedir que todos aqueles que querem explorar outros tenham um lugar no Facebook”, respondeu a rede social.

Esta é mais uma revelação das muitas que têm vindo a público nas últimas semanas sobre o Facebook. Muitos documentos foram entregues pela denunciante e antiga empregada da rede social, Frances Haugen. Um consórcio de meios de comunicação também recebeu os documentos internos da rede social e publicou várias revelações.

Os documentos mostram a base vasta de pessoas que utilizam o Facebook em todo o mundo, algo que levou a marca a ser multimilionária, com uma avaliação de milhares de milhões. No entanto, também mostra a inação e incapacidade da rede social em lutar contra problemas ilícitos, como a venda de drogas e atropelos aos direitos humanos.

Ativistas dizem que a rede social tem a obrigação, e os meios, para parar estes abusos já que ganha milhões em lucros todos os anos.

“O Facebook é uma empresa privada mas quando tem milhares de milhões de utilizadores, torna-se numa espécie de Estado, fazendo com que tenha uma responsabilidade social, quer gostem ou não”, declarou Mustafa Qadri, diretor executivo da Equidem Research, que estuda as condições de trabalho dos migrantes.

“Estes trabalhadores têm sido recrutados e ido para sítios como o Golfo, o Médio Oriente, locais onde as leis de trabalho não têm regulação de como podem ser recrutados e como são tratados quando vão para estes sítios. É a receita para o desastre”.

Mary Ann Abunda trabalha numa organização não-governamental que ajuda empregados filipinos e também critica a utilização do Facebook para fins de exploração.

“O Facebook tem duas caras. Sim, como publicita, conecta as pessoas mas também se tornou num refúgio para pessoas sinistras que esperam pelo nosso momento de fraqueza para atacar”.

Tanto a rede social como os ativistas dos direitos laborais têm alertado para o sistema “Kafala”, que predomina na região, e permite a nações ricas (devido à exploração de petróleo) a contratação a baixo custo de mão-de-obra a partir de África e Ásia. Os trabalhadores vêem-se diretamente ligados à residência do seu empregador, patrocinador ou “Kafeel”.

Muitos trabalhadores conseguem empregos que lhes permitem enviar dinheiro para casa mas, na maioria dos casos, os empregados são explorados, retiram-lhes o passaporte, trabalham horas e horas sem pausas e com salários baixos. Problemas que assolaram, por exemplo, a construção da Expo Dubai de 2020, ou a construção de estádios e infraestruturas no Qatar, para o Mundial de 2022, que se realiza em dezembro.

Os Emirados Árabes Unidos e o Qatar já afirmaram estar a trabalhar para melhorar as condições dos trabalhadores mas países como a Arábia Saudita ainda dão poder aos empregadores para decidirem se o empregado pode ou não sair do país. Empregadas domésticas encontram-se numa situação ainda mais delicada, já que ficam, sozinhas, a viver nas casas das famílias para as quais trabalham.

Nos documentos analisados pela Associated Press, o Facebook mostra conhecimento do problema, com os engenheiros da rede social a encontrarem três quartos de todas publicações que incitam à venda de pessoas. O conteúdo inclui vídeos de empregadas e as conversas que têm no Instagram. Pelo menos 60 por cento do conteúdo veio da Arábia Saudita.

O ministro para os Recursos Humanos e Desenvolvimento Social do país declarou, à AP, que o reino não tolera situações ilegais no mercado de trabalho e que todos os contratos feitos têm de ser aprovados pelas autoridades. E revelou ainda que o Facebook nunca o contactou para falar do problema. A Arábia Saudita pretende criar uma “campanha massiva” para chamar a atenção para as práticas ilegais na contratação de pessoas.

Documentos internos da rede social apontam, de facto, para um problema que apelidaram de “servidão doméstica”. Definiu o problema como uma forma de tráfico de pessoas com o propósito de as colocar em casas privadas através do uso de força, fraude ou coerção.

O Facebook tentou resolver parte do problema e deu explicações à Apple, que decidiu manter as aplicações da marca de Mark Zuckerberg nas suas plataformas. Os responsáveis pela rede social revelam ter levado a ameaça a sério, especialmente porque teria um impacto muito negativo no negócio e tiraria acesso ao Facebook a muitos utilizadores.

No entanto, apesar de dizer que está a lutar contra o problema, contas deste tipo continuam a proliferar tanto no Facebook como no Instagram. Ativistas pedem maior ação e dizem que os responsáveis pela rede social não fazem mais porque isso vai afetar os lucros da empresa e torna-se num assunto indesejado para se tratar.

Este tipo de inação deixa vários trabalhadores desesperados e vulneráveis a promessas de trabalho que não são mais que situações de exploração.

“Vemos, desde o início da pandemia, a importância destes trabalhadores mal pagos que tomam conta das nossas crianças, constroem os nossos edifícios, cozinham as nossas refeições. Eles não são apenas trabalhadores mal pagos, são trabalhadores essenciais. Por isso, temos o dever de falar destes problemas porque a nossa civilização está dependente destas pessoas”, concluiu Mustafa Qadri.
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