Black Lives Matter. Primeiro as estátuas, agora o financiamento da polícia

por Paulo Alexandre Amaral - RTP
Andrew Kelly, Reuters

Estátuas que caíram, ruas ocupadas com marchas pelos direitos dos negros, ‘Black Lives Matter’ (As vidas negras são importantes) pintado em ruas e avenidas por toda a América foram um primeiro passo na luta da comunidade negra norte-americana que explodiu com a morte de George Floyd sob o joelho de um agente da autoridade. Chegou agora a hora de transpor para o papel a mensagem hasteada em todas as centenas de manifestações que se seguiram a essa morte: cortar o financiamento da polícia e canalizar esse dinheiro para a área dos apoios sociais, por exemplo a habitação e as escolas.

O orçamento da polícia de Minneapolis esteve esta terça-feira em discussão pela primeira vez desde a morte de George Floyd. Os activistas americanos têm vindo a exigir cortes ao financiamento polícia “que não esteja vinculado a áreas directamente ligadas à segurança da comunidade”. Em causa está um quarto do bolo total, um montante na ordem dos 45 milhões de dólares (39,4 milhões de euros de um orçamento total de 170 milhões). Foi o pedido feito por dezenas de representantes da população aos membros eleitos da cidade na audição da Comissão do Orçamento da Câmara Municipal.

“Não sei por que continuaríamos a financiar o Departamento da Polícia no mesmo modelo que temos vindo a seguir se continuam a matar os nossos irmãos e irmãs negros”, apelou Hunta Williams, membro do Conselho de Igualdade Transgénero de Minneapolis (Transgender Equity Council, na designação original).

“Continuamos atentos. Estamos de olho em vocês”, avisou Hunta Williams.

As organizações “Reclaim the Block” e “Black Visions Collective” fez a defesa do corte no financiamento da polícia, incluindo um corte de 30 por cento nos orçamentos das esquadras e dos patrulhamentos. Os argumentos deixados estão todos na mesma sintonia: a área social pode beneficiar destas verbas, ajudando a fazer um trabalho de base para a integração da comunidade negra da cidade com mais de três milhões e meio de pessoas e que, de acordo com o census de 2010, era “branca” em pouco mais de 60%.
Um joelho em cima do orçamento da polícia

Contrário ao desfinanciamento da polícia surgiu o líder de uma organização empresarial da cidade: “Esta noite pedia-vos para não fazerem alterações súbitas e significativas ao orçamento do mayor (presidente da Câmara) até que possamos ter alternativas concretas”, propugnou Steve Cramer face às propostas para reconfigurar a orçamentação das forças da autoridade.

Com vários cortes ao financiamento já em acção desde o início do ano com o congelamento de novas contratações e um travão nos projectos da cidade, por exemplo, pressionado com a crise desencadeada pelo novo coronavírus e uma quebra de receitas que não pode inorar, o mayor Jacob Frey atirou ontem para cima da mesa uma meia-solução com dezenas de membros das forças de segurança em lay off.

O gabinete do presidente da câmara garantiu que o desenho do seu programa orçamental visa manter intacto o apoio “naqueles serviços urgentes aos residentes com mais necessidades”. Uma equação que poderá levar a um corte significativo na fatia do orçamento para a polícia e que os representantes desta nova luta querem direccionados para áreas como a habitação, decisões que deverão ser tomadas para 2021 dentro de uma semana.

“Tornou-se evidente que o sistema de policiamento não está a servir para manter as nossas comunidades seguras”, admitia esta terça-feira a presidente do conselho, Lisa Bender.

“Os nossos esforços para uma reforma [da polícia] falharam, ponto final”.

É um falhanço que está a obrigar à alteração de paradigma por toda a América. O presidente da câmara de Los Angeles, Eric Garcetti, prometeu já cortar até 150 milhões de dólares (130 milhões de euros) do bolo para o aumento previsto no orçamento do Departamento de Polícia. E o presidente da câmara de Nova Iorque, Bill de Blasio, prometia também ele no último domingo que estava disponível para transferir parte do financiamento destinado à polícia para iniciativas juvenis e serviços sociais.
Cortar fundos à polícia muda tudo. Ou não?

Os Estados Unidos são dos países da OCDE que mais gastam com as suas polícias, cerca de 390 mil milhões de dólares, o correspondente a 5,35 por cento das verbas do governo, quando muitos do membros desta organização optaram já por reduzir as atribuições das autoridades policiais e reverter essas verbas para programas sociais.

A equação não constitui um grande desafio e aponta quase sempre para um mesmo ponto: congelar os programas da polícia e voltar as atenções para as questões que envolvem as franjas sociais. A opção fora da América tem vindo a ser o reforço de áreas como a habitação, a juventude, a saúde mental e a reabilitação.

“Pôr o dinheiro na prevenção em vez da repressão” é uma fórmula que ganha terreno nesses outros parceiros da OCDE e as organizações que tomaram as ruas americanas entendem agora que é esta a profilaxia a impor a partir da rua. Um slogan gritado pelos negros quando se sabe que o sistema do país prefere criminalizar do que recuperar socialmente. Os números são eloquentes: 38,4% da comunidade prisional norte-americana é constituída por negros quando, em termos totais, os negros constituem apenas 13,4 por cento da população.

De qualquer forma, cortar meios à polícia tem um custo. Em particular quando as facções mais radicais apelam ao completo encerramento dos departamentos da polícia: a questão fundamental assenta aqui na raça e a polícia é muitas vezes vista como a própria institucionalização do racismo.

Alex Vitale, académico da Universidade de Brooklyn com trabalho publicado sobre o tema e ouvido pela CNN, defende que o passo seguinte deverá assenter na implementação de um novo modelo em que a polícia poderá prosseguir com funções diferentes.

“A ideia não é que amanhã tiremos toda a polícia das ruas. Estamos a falar de investir em intervenções comunitárias específicas que nos permitam adiar funções policiais específicas”, defendeu Vitale.

De qualquer forma, de acordo com uma sondagem recente (Universidade de Monmouth), 7 em 10 americanos afirmam estar satisfeitos ou muito satisfeitos com a sua polícia local. Apesar de tudo, 57% dos americanos admitem também que é uma realidade o uso de força pela polícia em relação aos negros quando comparados com a população branca e tendo em conta idênticas circunstâncias.

De acordo com a reportagem da CNN, muitos dos departamentos da polícia nos Estados Unidos são visados com críticas de racismo sistémico. A União Americana para as Liberdades Civis (American Civil Liberties Union – ACUL) aponta o dedo a departamentos da polícia desde Nova Iorque, Chicago, Filadelfia, Boston e Detroit: “Eles guardam as acções mais agressivas para os negros que vivem em áreas desfavorecidas”.

“Os negros continuam a ser assassinados e brutalizados pela polícia com quase impunidade. Mais do mesmo não vai resolver este problema”, escreveu Anthony Romero, diretor da ACLU.

Por exemplo, e de acordo com um estudo publicado em Proceedings of the National Academy of Sciences, equipas tácticas especiais (SWAT) entram em acção mais frequentemente em zonas das comunidades negras. No entanto, vários outros estudos concluíram que não havia qualquer benefício palpável nessas acções em termos de prevenção do crime violento.

A violência contra a comunidade negra é assim apontada como um modus operandi enraizado na cultura policial de certas regiões dos Estados Unidos. Em Minneapolis, onde George Floyd foi torturado em plena rua, morrendo nove minutos depois fruto da acção de quatro agentes da polícia da cidade, agora indiciados por homicídio (o agente Derek Chauvin) e auxílio a homicídio (os restantes três agentes da patrulha), os registos de violência policial contra a comunidade negra remonta a um século atrás.

Também assim são 100 anos de tentativas de reformar a força. Mas nunca a rua foi tomada desta forma, exercendo uma pressão incontrolável e que não pode ser ignorada nem pela Casa Branca.
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