Bruxelas.PT - O futuro da Europa

por Andrea Neves correspondente Antena 1 em Bruxelas

Episódio original publicado a 21 de julho de 2023 | Foto: Laurie Dieffembacq © European Union 2018 - Fonte: EP

Uma conversa da jornalista Andrea Neves com José Luís Pacheco, ex-Chefe do Secretariado da Comissão dos Assuntos Constitucionais do Parlamento Europeu.

A Conferência sobre o Futuro da Europa
O que decidiram os cidadãos na Conferência sobre o Futuro da Europa? Que União Europeia querem?

Se eu tivesse que definir em duas palavras, diria que querem uma Europa mais capaz de tomar medidas nas áreas que eles consideram essenciais para a proteção do nosso modo de vida. Ou seja, com mais competências em áreas como a saúde, a educação e a política externa, por exemplo.

Não é por acaso que são estas áreas, porque, como se viu, são aquelas onde houve mais problemas, ultimamente, e nas quais mais se fez sentir a necessidade da Europa. Porque cada Estado, por si, não pode atuar de modo eficaz.

Portanto, querem uma Europa mais capaz, mais eficaz, com métodos de decisão mais eficientes, que produza resultados mais depressa, de um modo mais simplificado. E querem uma Europa mais democrática, porque também insistiram muito nessa vertente mais democrática e mais respeitadora dos direitos fundamentais.

Estes cidadãos foram escolhidos aleatoriamente?

Aleatoriamente. Aliás, quem os escolheu não foram as Instituições Europeias, foi de acordo com uma metodologia definida por uma universidade. E eram no total 800, os escolhidos, segundo uma metodologia que garantiu uma representatividade mínima por género, grupo social, etc… mas de modo aleatório. Portanto, não houve intervenção de nenhum órgão político para os escolher. Eles reuniram-se entre si e com representantes das Instituições Europeias e dos Estados-Membros.

Isso é que foi interessante. Foi a primeira experiência deste género. Já tivemos painéis de cidadãos, já tivemos reuniões entre Instituições nacionais e europeias, mas desta vez estivemos todos juntos. Aos 800 cidadãos, divididos em grupos de 200, juntaram-se 108 Deputados europeus, igual número de Deputados nacionais, dois representantes de cada um dos Estados-Membros e três representantes da Comissão Europeia.

E também estiveram presentes alguns observadores, como vários comités – o Comité Económico Social, o Comité das Regiões – e ainda várias instituições e ONGs. Portanto, estava garantida uma presença relativamente ampla.

Claro que se pode sempre dizer quer eram apenas 800, mas através do método de escolha tentou-se arranjar um grupo minimamente representativo.

Obviamente que um conjunto deste tipo não pode tomar decisões votando por maioria e minoria, porque enquanto um Deputado europeu na Alemanha representa 800 mil cidadãos, o cidadão que foi escolhido aleatoriamente só se representa a ele próprio e só ali está para dizer aquilo que ele pensa, não tem mandato de ninguém. Mas o que é interessante é se que chegou a conclusões que foram partilhadas pelos vários intervenientes nesta conferência.

Os cidadãos estavam de acordo sobre essas propostas e, em geral, os representantes das Instituições Europeias e dos Estados-Membros também concordaram. Houve algumas questões em que os cidadãos queriam ir mais longe e elas estão identificadas. Não houve um acordo global mas, em geral, houve um consenso sobre essas sugestões, sobre essas propostas para modificar o modo como a União funciona.
Mais competências para a União Europeia
E notou-se que os cidadãos querem mais competências em áreas em que a União Europeia não tem tantas competências, o que implica necessariamente uma questão de adaptação da própria União Europeia, se quiser seguir aquilo que os cidadãos querem que ela seja. E como é que isso se faz?

Pois, precisamente a Comissão de Assuntos Constitucionais, na qual eu trabalhei, fez questão de salientar que todas as Instituições e todos os Estados-Membros se comprometeram a dar execução às conclusões.

Algumas dessas conclusões apontam para modificações do modo como a União funciona, o que exige a revisão dos Tratados. A Comissão onde eu trabalhava teve como tarefa identificar as propostas da Conferência que exigiam a revisão dos Tratados e elaborar propostas para efetivar essa revisão.

Isto tendo em consideração aquilo que foi acordado na Conferência entre os cidadãos, mas não só, porque o Parlamento Europeu já há muito tempo que defendia também algumas modificações e algumas delas coincidem, são as mesmas.
Eu tenho esperanças de que dessa Conferência saia – aliás, já saiu e vai ser reforçado seguramente – um pedido ao Conselho Europeu para convocar uma convenção para começar a preparar a revisão dos Tratados, a qual só pode ser feita se houver unanimidade em todos os Estados-Membros.

Convém sempre repetir isto para evitar confusões.

Os cidadãos disseram que gostariam que estas assembleias se realizassem mais periodicamente. Aliás, esta Conferência esteve muito tempo parada e foi preciso, durante a Presidência Portuguesa da União Europeia, desbloquear a situação. É possível manter estes fóruns, este tipo de interação entre as Instituições e os cidadãos?

Eu penso que sim, mas não de qualquer modo. Em primeiro lugar, devo dizer que a Conferência esteve muito tempo parada, e diria mesmo atrasada no seu lançamento porque, apesar de toda a pressão do Parlamento Europeu, as outras Instituições que se tinham comprometido a fazer a Conferência não avançavam com a iniciativa. Depois veio a COVID-19 o que também complicou as coisas. Não foi tudo intencional.

Mas sim, eu acho que é possível e que é muito útil. Agora, não vamos fazer de dois em dois anos ou de ano a ano uma conferência sobre o futuro da Europa em geral. Para que se torne útil – esta era, digamos, um momento do arranque do processo – mas para que este tipo de iniciativa se torne útil – e há muitos Estados que já têm painéis de cidadãos e assembleias de cidadãos para discutir vários temas – eu creio que tem de ser algo mais estruturado, nomeadamente em relação aos temas que se vai discutir.

Para já há vários níveis, o nível nacional e o nível europeu. Ao nível nacional, os Estados continuarão a fazer este tipo de iniciativas, alguns mais, outros menos, como já faziam antes. A nível europeu eu sou favorável à existência deste tipo de fóruns.

Seria necessário, talvez, definir melhor os temas em discussão, mas isso também se pode fazer através de uma consulta pública. Não tenho dúvidas de que se hoje se discutisse qual o tema para uma conferência de cidadãos, todos diriam que devia ser sobre aquilo que se passa nas nossas fronteiras, a nossa defesa, a nossa segurança, ou seja, a política externa e de defesa.

E depois convém ter noção do que é que se espera deste tipo de reuniões.

Os casos mais bem-sucedidos deste tipo de assembleias de cidadãos, pelo menos do que eu sei, acontecem na Dinamarca e na Irlanda. São relativamente limitados, como fórum, e com temas bem definidos. Mas a qualidade dos debates – que não é completamente espontânea porque normalmente convidam especialistas para estruturar os debates – tem sido tal que já obrigaram a mudanças legislativas Na Irlanda, por exemplo, vimos o que aconteceu em matérias que pareciam absolutamente intocáveis, como a criminalização do aborto. E isso teve muito a ver com estes debates, com a qualidade destes debates envolvendo cidadãos e com o compromisso das Instituições em tentar, depois, dar-lhes sequência.

Portanto, eu acho que sim, que é possível tentar – não institucionalizar, porque por definição, esta é uma iniciativa não institucional – regularizar este tipo de eventos, mas sempre de um modo relativamente estruturado em vez de começar a fazer assembleias todos os meses, sobre tudo e sobre nada, que depois não tem qualquer consequência.
As Iniciativas de Cidadania Europeia
Mas quando os cidadãos dizem que também gostavam de ser mais ouvidos, às vezes desconhecem que eles têm outros processos para ser ouvidos, como as Iniciativas de Cidadania Europeia que podem ser desenvolvidas por grupos de cidadãos.

Bem, começaria logo por dizer que tem um meio muito importante para ser ouvidos que é votar algo que, por vezes, não fazem tanto como seria desejável. Aquilo a que chamamos Iniciativas de Cidadania Europeia, que podem ser lançadas por um milhão de cidadãos oriundos de um certo número de Estados- Membros para garantir que é um assunto mesmo europeu – é fácil, talvez, arranjar um milhão de cidadãos sobre um problema específico de um Estado, mas sobre seis ou sete já é mais complicado – são precisamente um meio de alertar as Instituições para dizer “atenção, há aqui um problema e nós propomos que se resolva desta forma”. Depois as Instituições têm que analisar essas iniciativas, primeiro para ver se a iniciativa é bem-sucedida, ou seja, se obtém a assinatura de um milhão de cidadãos, se as assinaturas são representantes de um mínimo de Estados-Membros, etc. Por fim, normalmente a Comissão dá uma resposta aos cidadãos e, em alguns casos, estas iniciativas podem mesmo dar origem a uma proposta legislativa a nível europeu.

Não é obrigatório que assim seja porque a democracia participativa não é democracia direta, ou seja, não são os cidadãos que passam a decidir.

Até porque seria um pouco forçado dizer que se um milhão de cidadãos quer uma coisa é. porque tem que ser feita. Nós somos 421 milhões. Portanto, e apesar de tudo, convém também ouvir aqueles que representam os outros mais de 400 milhões.

Mas há casos que têm conduzido a debates políticos importantes e até à apresentação de propostas legislativas. O Parlamento tem-se preocupado muito em criar mecanismos para facilitar aos cidadãos o lançamento dessas iniciativas europeias, tanto que podem ser feitas de modo digital, de modo físico, por assinaturas em papel, etc. E existe até algum modo de financiamento da atividade do seu lançamento.

É verdade que há muita gente que desconhece esta possibilidade e depois também não é todos os dias que se encontra um tema que interessa muito às pessoas de vários países. Os cidadãos portugueses até podem dizer: “mas eu queria mais e melhores serviços médicos aqui em Portugal”. Pois, mas a União Europeia, em princípio, não é responsável pelos serviços médicos em Portugal.

Portanto, não é possível lançar estas iniciativas apenas para resolver problemas dos cidadãos de uma certa área de um determinado país. Têm de dizer respeito a questões europeias que possam ser resolvidas através de iniciativas legislativas europeias.

Mas sim, este é um instrumento importante de democracia participativa e, eu não tenho números precisos, mas sei que já foram lançadas várias dezenas delas. Muitas não têm sucesso, mas é uma questão das pessoas se habituarem a fazê-lo. A participar.

pub