Bruxelas.PT - O Mercado Único Europeu

por Andrea Neves correspondente Antena 1 em Bruxelas

Episódio original publicado a 17 de Novembro de 2023 | Foto: Dominique Hommel © European Union 2020 - Fonte: EP

Uma conversa da jornalista Andrea Neves com o Embaixador Pedro Lourtie, Representante Permanente de Portugal junto da União Europeia.

O Mercado Único Europeu
O que é a Mercado Único e que obrigações e direitos cria para os Estados que aderem a este mercado?

O Mercado Único ou o Mercado Interno, como também é conhecido, é de facto sustentado por quatro pilares, por quatro liberdades: a liberdade de circulação de pessoas; a liberdade de circulação de bens e de mercadorias; a liberdade de circulação de serviços e a liberdade de circulação de capitais.

Este mercado único tem uma história: a União Europeia, enfim, na altura ainda não era a União Europeia, mas o Tratado de Roma criou um mercado comum.

Mas foi importante desenvolver, para além deste mercado comum, um Mercado Interno que fosse um espaço que não tivesse fronteiras e no qual as mercadorias, as pessoas, os serviços e os capitais pudessem circular de forma livre. E isso é feito através de um Tratado chamado Ato Único Europeu de 1986 e que, de certo modo desenhou um roteiro para que em 1992 esse Mercado Único fosse concretizado.

Obviamente que esta é uma tarefa que está permanentemente a ser melhorada, a ser aperfeiçoada, mas é interessante porque neste ano 2023, celebramos os 30 anos do Mercado Interno.

Mas o Mercado Interno que se baseou nessas quatro liberdades, pode ter algumas necessidades de atualização, porque agora também já se fala, por exemplo, da liberdade de circulação digital. Esta necessidade vem acrescentar uma nova liberdade ou vem fazer com que as outras sejam de alguma forma melhoradas?

Sim, o Mercado Único que tem estas liberdades – e, obviamente, todas elas têm as suas especificidades – só é possível com um conjunto de regras que são, não só de reconhecimento mútuo, como também de harmonização entre os Estados que permitem que estas quatro liberdades sejam exercidas.

Do ponto de vista económico a liberdade de serviços – e o que é que é a liberdade de circulação de serviços? É, por exemplo, uma empresa que está instalada em Portugal poder instalar-se noutro país da União Europeia – teve que ser atualizada com o novo mundo que vivemos há alguns anos, que é o mundo do digital, do online. As empresas devem poder exercer as suas atividades em linha (online) sem restrições, mas mantendo as condições de concorrência leal, mantendo o nível de proteção dos consumidores, que deve ser elevado e – particularmente importante também no que diz respeito às questões online – mantendo a proteção dos dados pessoais.

Por isso, o que a União Europeia tem vindo a fazer nos últimos anos tem sido a atualização destas regras do Mercado Interno. O chamado Mercado Único Digital surge para que as ferramentas digitais possam ser usadas de forma livre no contexto do Mercado Único.

Mas essas liberdades que fazem parte do Mercado Único são indivisíveis, ou seja, um país não pode decidir – como se chegou a falar na altura do Brexit –querer beneficiar de uma mas não aceitar outra?

Sim, são indivisíveis, porque é considerado que se apenas se tivesse uma parte dessas liberdades, isso acabaria por desequilibrar a forma como nos relacionamos, e como os Estados-Membros se relacionam. E também é verdade que dificilmente se conseguiriam ter estas quatro liberdades, em pleno, se uma delas não funcionasse. Eu dou um exemplo: é difícil ter a liberdade de circulação de serviços sem ter liberdade de circulação de pessoas ou seja, sem que as pessoas se possam deslocar para fornecer um serviço ou para se poderem estabelecer num outro país. E o mesmo se aplica à questão dos capitais e dos bens e mercadorias. E por isso, tal como acontece dentro de um país, no seio da União Europeia, no seio do Mercado Único, estas quatro liberdades estão inteiramente ligadas.

E pode alguma delas ser derrogada?

De uma maneira geral não, não podem ser derrogadas.

O que significa que há sempre aqui um trabalho conjunto entre os países, para que se houver algum problema seja resolvido, sem haver necessidade de proceder a uma limitação?

E nós tivemos um exemplo com o que se passou no tempo da COVID-19, das reações que alguns países tiveram no início porque houve países que – e compreende-se a razão pelo qual o fizeram – logo no início introduziram algumas restrições à exportação de determinado tipo de produtos, por exemplo, de máscaras. Essas restrições não são legais, não são possíveis e por isso rapidamente teve que ser reposta a livre circulação de mercadorias, nesse caso.
A Segurança dos produtos e dos consumidores
E a segurança dos Europeus, por exemplo, a nível da saúde e da qualidade dos produtos alimentares dentro da União Europeia, como é que se garante?

Essas regras são extremamente apertadas e é isso que permite a existência de um Mercado Único, tal como o conhecemos. Existem regras que têm que ser cumpridas por todos os Estados-Membros, pelas empresas e pelos produtos de todos eles, e existem regras que têm que ser implementadas pelas entidades de controlo oficial dos vários países.

Quem verifica a qualidade dos produtos alimentares ou a qualidade dos vários tipos de produtos são as entidades de cada um dos Estados-Membros, mas sempre de acordo com regras europeias, de acordo com orientações que são acordadas por todos os 27 países.

E a proteção dos consumidores assegura-se da mesma forma?

Exatamente, por isso são regras comuns que têm como objetivo proteger os consumidores, proteger a saúde, proteger a segurança e os interesses económicos e jurídicos dos cidadãos, independentemente do local onde residam, independentemente de para onde se desloquem ou independentemente de onde façam as suas compras.

Esta movimentação de pessoas implica também a movimentação de estudantes no Programa Erasmus. Aplicam-se as mesmas regras ou, neste caso, há alguma definição diferente?

Comecemos por falar do Programa Erasmus, que eu acho que é um dos grandes sucessos da União Europeia, é, pelo menos, seguramente um dos programas de maior sucesso: este programa só é possível porque estas liberdades existem, porque a liberdade de circulação de pessoas existe. E hoje em dia é de facto um programa utilizado por muitos estudantes, e não só, do ensino superior. Começou por ser um programa para o ensino superior, mas hoje em dia, é também para muitos estudantes de outros níveis.

Colocam-se, obviamente, algumas questões na área da educação e é verdade que o reconhecimento de diplomas existe, mas mantém-se na esfera das competências nacionais, ou seja, os diplomas são reconhecidos – e é isso que permite, obviamente a circulação de pessoas e neste caso não só de estudantes mas depois também de pessoas já com um diploma – mas esse reconhecimento segue regras nacionais.

Já o reconhecimento de competências é definido a nível europeu e isso permite que os profissionais possam circular livremente na União Europeia.

Dito isto, é importante notar, porque seguramente quem nos estiver a ler pode já ter sido confrontado com algumas dificuldades, que este é um trabalho que está em permanente atualização.

O Mercado Único é um trabalho também de detalhe e obviamente, por vezes, há ainda regras que não estão totalmente atualizadas e que não permitem a livre circulação com a facilidade com que seria desejável. Também aqui temos um trabalho importante a fazer. Desde logo da Comissão Europeia, na apresentação de propostas que possam ajudar a ultrapassar esses bloqueios, e dos Estados-Membros na sua negociação com o Parlamento Europeu.
A concorrência no Mercado Único Europeu
Já nos falou das questões de concorrência por causa da livre circulação de capitais. Também aqui há regras muito bem definidas?

Sim. A concorrência é uma competência europeia e, como é evidente, a livre circulação de capitais é um dos elementos que reforça a necessidade de ter regras bem definidas em termos de concorrência. O que se tenta garantir é que, com a melhor concorrência no espaço europeu, possa o Mercado Interno funcionar de forma justa entre as várias empresas, para que elas possam competir em condições de equidade.

E isso é uma competência que, a nível europeu, é exercida diretamente pela Comissão Europeia e é fundamental para que o Mercado Único possa funcionar. Eu dou um exemplo, para tentar concretizar de forma talvez mais visível: no espaço do Mercado Único, não é possível – ou seja, não é possível, sem restrições – que um Governo decida dar ajudas estatais a uma empresa nacional porque isso vai distorcer a concorrência com empresas idênticas, desde logo no próprio país, mas também no espaço da União Europeia. As regras estão muito bem definidas e essa é uma competência direta da Comissão Europeia.
Acordos de Comércio com países terceiros
Há, no entanto, acordos que podem ser feitos com países terceiros em relação a esta livre circulação?

Sim, e há países que estão integrados no Mercado Único: a Noruega, a Islândia e o Lichtenstein – porque são países do chamado Espaço Económico Europeu – e há um país que tem um conjunto de acordos que lhe dá um acesso parcial mas bastante alargado ao Mercado Único, que é a Suíça, através de uma série de acordos bilaterais.

É verdade que se pode olhar para esta situação como se fosse uma exceção àquela indivisibilidade de que falávamos há pouco. Não é. E não é porque na realidade os acordos bilaterais com a Suíça abrangem todas estas áreas.

Mas o que eu estava a tentar perceber é se por exemplo, quando ouvimos falar de acordos de comércio com países terceiros, isso está relacionado com o Mercado Único?

Não. Isso é diferente, ou seja, o Mercado Único tem várias vertentes e uma delas é uma União Aduaneira. A União Europeia tem uma Política Comercial Única e pode negociar acordos comerciais com países terceiros.
Há uma rede de acordos comerciais bastante alargada. Neste momento, se não me engano, há mais de 40 acordos de comércio livre com vários países, desde o Canadá ao Vietname.

A União tem vindo a negociar vários desses acordos. Concluiu recentemente um acordo com a Nova Zelândia e está a negociar com a Austrália. E tem havido negociações importantes com os países do Mercosul.

Nesses casos o que a União Europeia tenta fazer é, numa base recíproca, baixar ou mesmo eliminar os direitos a exportações de bens e de serviços, ou seja, fazer com que possam ser exportados livres de direitos aduaneiros.

Existem também acordos ao nível dos mercados públicos, para que tanto empresas europeias como empresas do país com o qual negociamos possam ter acesso mútuo aos mercados públicos.
 
Esses acordos regulam os regimes de subsídios, por exemplo, da concorrência de que falamos há pouco. E isto é importante porquê? Porque a partir do momento em que o comércio de determinados bens passa a ser livre, também se colocam as questões de concorrência. E agora, mais recentemente, os acordos comerciais que a União Europeia tem vindo a negociar também têm obrigações relacionadas com a proteção do clima e com os direitos laborais.

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