Bruxelas.PT - O Pacto de Estabilidade e Crescimento

por Andrea Neves correspondente Antena 1 em Bruxelas

Episódio original publicado a 6 de outubro de 2023 | Foto: Bruno Neurath-Wilson - Unsplash

Uma conversa da jornalista Andrea Neves com Milton Nunes, Conselheiro Político no Parlamento Europeu

O Pacto de Estabilidade e Crescimento e o bom funcionamento do Euro
O que é o PEC, o Pacto de Estabilidade e Crescimento?

O Pacto de Estabilidade e Crescimento é um conjunto de regras para o bom funcionamento do Euro, a nossa moeda única. Supostamente, e como o próprio nome indica, foi criado para assegurar a estabilidade e o crescimento económico na União Europeia.

Ou seja, faz parte da coordenação de políticas europeias.

Exatamente, tem o objetivo de coordenar as políticas, mais concretamente as políticas orçamentais e económicas ao nível europeu, porque sem a devida coordenação entre os Estados-Membros o Euro não poderia funcionar.

O PEC nasce porque surge a necessidade, sobretudo na altura das crises financeiras, de articular as economias, as finanças e os Estados-Membros de forma a, primeiro, não haver surpresas e depois para que pudessem estar interligados e entreajudarem-se uns aos outros, se assim fosse preciso.

Sim, exatamente. Há essa componente de assegurar a devida estabilidade da Zona Euro, ou seja, os Estados-Membros cumprirem e seguirem as mesmas regras. Mas há também um contexto histórico que levou à sua criação. Por exemplo, as regras mais emblemáticas do PEC resultam do acordo entre a Alemanha e a França no início dos anos 90.

Ou seja, havia aqui um receio que os países do Sul pudessem gastar mais do que as suas possibilidades e colocar em risco a própria sustentabilidade da Zona Euro. Havia um medo da opinião pública, em países como a Alemanha, que fosse o contribuinte alemão que acabasse por pagar pelas crises dos países do Sul. E essa divisão entre países do Sul e países do Norte, no que toca à perspetiva do PEC, ainda continua a existir e continua a ser a fonte de toda a discórdia quando falamos do PEC ao nível europeu.

Para explicarmos esse contexto precisamos então de conhecer quais são as regras mais emblemáticas do PEC e a regra dos três por cento do défice é a regra mais falada.

As regras mais emblemáticas, que aliás surgiram com o Tratado de Maastricht em 1992, estipulam que o déficit orçamental de um país não deve exceder os três por cento do Produto Interno Bruto e o total da dívida pública não deve exceder os 60 por cento do PIB. Mas a criação formal do PEC aconteceu em 1997, em Amesterdão, um pouco antes da criação da moeda única em 1999.

Mas porquê três por cento do déficit e 60 por cento da dívida pública?

Bem, isso são opções políticas. Ao contrário do que se possa pensar, não foi um critério científico que definiu a existência dessas duas regras. Daí, ao ponto de um antigo Presidente da Comissão Europeia – Romano Prodi – apelidar o PEC de “estúpido”, porque não há uma base científica para a sua criação e as regras em si, na sua rigidez, não significam nada. Quer dizer, as regras de três por cento do déficit e de 60 por cento da dívida pública, não olham para a realidade socioeconómica de um país. As regras são cegas em relação ao que é a vida nos Estados-Membros e às especificidades a que, por vezes, os países têm que dar resposta, como uma crise financeira ou uma pandemia ou o início de uma guerra. E há também questões específicas de países transfronteiriços, por exemplo, que estão a lidar com problemas como a imigração. Há problemas orçamentais que não podem ser programados porque são situações externas que não dependem do país. Mas o PEC é cego a tudo isto. Daí a necessidade constante de reforma do Pacto de Estabilidade e Crescimento.

Já vamos falar certamente sobre as reformas, mas deixe-me aqui precisar alguns pontos. Os três por cento do déficit e os 60 por cento máximo de dívida pública do PIB aplicam-se aos países da Zona Euro ou a todos os países da União Europeia?

Aplicam-se essencialmente aos países da Zona Euro mas também aos países que pertencem à União Económica e Monetária – que também fazem parte da União Europeia – ou seja, aplica-se a todos os países da União Europeia.

Aplica-se a todos os países da União Europeia.

É o que está nos Tratados.
A suspensão das regras do Pacto de Estabilidade e Crescimento
Pode haver uma suspensão eventual de uma das regras do PEC só para um país?

Poderá haver a suspensão só para um país mas não é uma prática comum. Por exemplo, nós assistimos à suspensão das regras do PEC parcialmente durante o período da pandemia. Porquê? Porque havia a consciência que era impossível cumprir com as metas do PEC numa altura de crise sanitária, como a que nós vivemos durante a pandemia, em que os países precisavam de investir nos seus serviços de saúde, em que os países precisavam de gastar no que se referia a subsídios de desemprego – muitas pessoas perderam o seu emprego – e durante a qual, literalmente, foi necessário investir. E esse investimento não era conjugado com as regras do PEC e por isso houve uma suspensão.

Mas foi uma suspensão coletiva?

Sim.

E podia ser só para um?

Podia ser só para um. A denominada Cláusula de Escape prevê que pode ser aplicada a um país ou a todos os países, no seu conjunto, da União Europeia.

A Cláusula de Escape é precisamente a suspensão das regras do défice e da dívida.

A Cláusula de Escape é a suspensão parcial das regras do défice e da dívida. Exatamente.

E quem pode declarar essa suspensão?

Normalmente, a proposta advém da Comissão Europeia e a decisão é tomada ao nível do Conselho de Ministros da União Europeia onde se sentam os Ministros e os representantes de cada país da União Europeia.

Enquanto as regras estiverem em vigor, os países têm que as cumprir. E se não cumprirem?

Se não cumprirem, em teoria, há um sistema de sanções que poderá levar ao pagamento de uma coima entre zero ponto dois (0.2) a zero ponto cinco (0.5) do PIB. E poderá levar, também, ao congelamento dos fundos europeus a que os Estados-Membros têm direito.

Agora, sejamos claros: dos mais de 30 procedimentos abertos pela Comissão Europeia, em nenhum se verificou a aplicação de sanções. E essa é uma das críticas fundamentais dos países do Norte, a de que nunca se apliquem sanções. Se os países do Sul pedem mais flexibilidade para fugir às regras do PEC, os países do Norte pedem “mais dentes”, ou seja, métodos mais eficazes para a aplicação de sanções.
 
O mais próximo que estivemos de isso acontecer foi em 2016, no caso de Portugal e Espanha, em os dois países estiveram submetidos a um processo de incumprimento e estiveram à beira da aplicação de sanções.
Mas no fim imperou o bom senso, até porque no caso de Portugal, nós sabemos muito bem que, durante 2011 e 2015, estivemos sobre a intervenção da Troika. E mesmo indo além da Troika – como ficou conhecido – nós não conseguimos cumprir com as metas do défice. Por isso há alguma irracionalidade nas regras do PEC, porque nem sempre se relacionam nem com a realidade macroeconómica, nem com a realidade económica e social dos Estados-Membros.

O Parlamento Europeu tem algum papel nesta política?

O Parlamento Europeu deveria ter um papel mais ativo no processo de aplicação do PEC e no processo do Semestre Europeu. Infelizmente, não tem ainda o poder que o Parlamento Europeu devia ter, até para dar legitimidade democrática à aplicação das regras do PEC e, eventualmente, à aplicação de sanções. Por exemplo, a decisão de aplicar ou não sanções a um Estado-Membro passa pelo Conselho da União Europeia mas não passa pelo Parlamento Europeu.

O Parlamento Europeu tem um papel, obviamente, de pressão política. Pode emite um parecer, ou seja, uma posição em forma de resolução mas que não tem, necessariamente, força legal.

As três fases do Pacto de Estabilidade e Crescimento
Quando o PEC precisa de ser acompanhado, estruturado, ele tem, por assim dizer, três fases: fase de prevenção, fase de correção e fase de execução.

Temos essas três fases da aplicação do PEC. A primeira fase é a de prevenção e nesta fase os Estados-Membros fazem as suas promessas de cumprimento do PEC e apresentam os seus programas à Comissão Europeia. Os Estados-Membros assumem que vão tentar zelar para o cumprimento das regras. Quando isso não acontece entramos numa outra fase que é da correção. Por exemplo, quando há procedimentos de défices excessivos pretende-se criar um plano para a correção gradual desses défices. Não é um processo em que os Estados-Membros tenham de chegar aos três por cento ou aos 60 por cento de um ano para o outro. Não. Há um procedimento, há uma tentativa de suavizar o ritmo de redução do déficit da dívida, porque uma redução abruta do déficit ou da dívida pode levar a situações de austeridade extrema e causar um efeito exatamente contrário, ou seja, mais instabilidade do que propriamente estabilidade no Pacto de Estabilidade e Crescimento.
A discussão sobre as eventuais mudanças nas regras do Pacto de Estabilidade e Crescimento
Ainda estamos numa fase em que o PEC está suspenso, mas tem-se dito, sobretudo os Comissários responsáveis têm insistido, que vai regressar em breve. No entanto, já há vozes que dizem que deve regressar, sim, mas com maior flexibilidade. Estamos a iniciar um período de modificação de alteração das regras do Pacto de Estabilidade e Crescimento?

Bem, o Pacto de Estabilidade e Crescimento, desde a sua criação, tem sido objeto de várias reformas e os objetivos são sempre os mesmos: tentar criar alguma racionalidade macroeconómica, mas também introduzir mais flexibilidade que permita a adaptação das regras em função da realidade política, económica e social de cada país.

E o que está neste momento em cima da mesa, principalmente antes do regresso do PEC a 100 por cento – porque neste momento, como disse, as regras estão suspensas devido à Cláusula de Escape – é a tentativa de introduzir maior margem de manobra para a redução do déficit e da dívida nos Estados-Membros, depois de um período dramático de pandemia. Isto também depois de um período que foi marcado pela crise energética e pelas consequências sociais e económicas da guerra na Ucrânia. O que se quer é que as regras permitam, de uma maneira razoável e realista, a redução do défice e a redução da dívida de forma a que se assegure a estabilidade perante os mercados financeiros, mas que não fomente, de novo, a introdução de doses excessivas de austeridade que normalmente produzem o efeito contrário.

Tem-se falado também da possibilidade de dar maior flexibilidade ao Estado-Membro para escolher o caminho que quer traçar para chegar a esses três por cento do déficit, se os estiver ultrapassado. Isso significa que o Estado pode vir a escolher o que vai fazer e como vai fazer ou poderá escolher, mas dentro de algumas linhas gerais?

A Comissão Europeia e as Instituições Europeias, no seu geral, definem quais são as grandes prioridades políticas da União Europeia e de acordo com essas grandes prioridades políticas – por exemplo, a transição ecológica, a transição digital, a dimensão social – os Estados-Membros têm alguma margem de manobra para dizer onde é que querem investir, de uma maneira limitada, mas têm alguma margem para definir a sua política orçamental.

E poderão ter mais no futuro?

Eu espero bem que sim, e esse é o objetivo desta discussão em torno das regras do PEC e que está novamente em cima da mesa. Eu não acredito que aconteçam grandes alterações porque não estou à espera que a regra dos três por cento ou a regra dos 60 por cento sejam alteradas, não vão ser.
Mas o que vai acontecer é o que sempre aconteceu: uma discussão sobre a flexibilidade e a forma de aligeirar um pouco a aplicação destas regras para dar alguma margem de manobra aos Estados-Membros para poderem investir, principalmente, por exemplo, agora que estamos confrontados com as necessidades de investimento que advêm da transição ecológica para o cumprimento da naturalidade carbónica, até 2050.
 
Países como Portugal vão precisar de investir imenso e se estivermos amarrados às regras do PEC, não vamos conseguir fazer, efetivamente, essa transição ecológica de uma maneira responsável e de uma maneira que não crie uma degradação do tecido social do país.

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