Cessar-fogo entre Israel e Hamas. Regresso a que casa?

por Cristina Santos - RTP
Reuters

Quando o choque substitui a alegria de regressar a casa é porque a devastação toma conta dos olhos. Entre as carcaças destruídas de edifícios que foram casa e trabalho, talvez repouse a dura esperança de encontrar corpos. Os corpos de familiares, amigos. Rostos que moram apenas nas memórias daqueles que agora podem regressar a casa, apesar do ódio.

Do outro lado, as lágrimas de alegria abraçaram as primeiras reféns a serem libertadas pelo mesmo ódio que as sequestrou e levou de casa há mais de um ano.

 
Crédito: Reuters

No entanto, depressa a alegria foi substituída pelo choque e pela raiva perante a demonstração de força do Hamas na entrega das três reféns, após 15 meses de guerra.


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O editorial do jornal digital Times of Israel escreve que “a nação assistiu com bastante pavor quando dezenas de homens armados do Hamas, saudados pelo entusiasmo de uma grande multidão, entraram na Praça Saraya, em Gaza, para uma cerimónia selvagem e de celebração, em plena luz do dia, perante o mundo”.

O choque em Israel alimentou a raiva de colonos israelitas na Cisjordânia. Estes colonos, que se opuseram ao acordo de cessar-fogo, tentaram bloquear as entradas da cidade palestiniana de Ramallah na noite de domingo, antes do regresso de 90 mulheres e crianças detidas em prisões de Israel.

Nessa noite, o ódio incendiou casas, carros em três cidades da Cisjordânia. 

Em comunicado, as Forças de Defesa de Israel garantiram ter agido “rapidamente” para dispersar os manifestantes, prendendo duas pessoas. Esta garantia foi contestada pela organização de Direitos Humanos Yesh Din (Existe Lei), uma das maiores de Israel.Cerca de 1.200 pessoas foram mortas no ataque do Hamas em outubro de 2023 e 250 feitas reféns.  

Ninguém sabe se as seis semanas desta primeira fase do acordo vão ser cumpridas, até porque na segunda-feira surgiram relatos de violência. Por exemplo, em Rafah, quando militares israelitas dispararam contra oito pessoas, de acordo com relatos dos serviços médicos palestinianos. O exército israelita diz que está a verificar o que aconteceu.
Relatos de quem regressa

O jornal The Guardian conta que Gaza continua partida em duas pelo corredor Netzarim, que Israel instalou e onde permanecem os militares israelitas que devem, segundo o acordo, começar a retirar após o sétimo dia de cessar-fogo.


Crédito: Reuters (refugiados palestinianos celebram cessar-fogo)

Contudo, os civis palestinianos, deslocados pela guerra, começaram a fazer a longa viagem de regresso às suas cidades, aldeias e campos de refugiados.A pé ou em carroças puxadas por burros percorrem estradas repletas de engenhos explosivos não detonados.

Youssef tem 22 anos, perdeu os pais e o irmão durante a guerra e regressou à cidade de Beit Lahia, no norte da Faixa de Gaza, onde vivia. 

“A primeira sensação que tive quando cheguei a Beit Lahia foi de choque e pânico com o horror e os escombros. É como se um terramoto de nove graus na escala de Richter tivesse atingido a minha cidade".


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Youssef acabou por voltar para a cidade de Gaza. “Pretendo regressar apenas quando houver condições para a vida humana… água, alimentos, serviços médicos e infraestruturas para que possamos recomeçar as nossas vidas”.“Não há ruas, nem lojas, nem parques, nem mercados, nem hospitais. Não há nada além de escombros e alguns”, descreveu o jovem palestiniano ao Guardian.

Umm Saber, uma viúva de 48 anos e mãe de seis filhos, conseguiu regressar a Beit Lahia no domingo. À Associated Press conta ter visto vários corpos no caminho, alguns dos quais pareciam ter estado ao ar livre durante semanas.

A casa desapareceu completamente e os vizinhos já começaram a vasculhar os escombros à procura de familiares desaparecidos.


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Outros palestinianos tentam abrir espaço suficiente para abrir tendas no lugar das casas.

O hospital local também foi “completamente destruído”, disse Umm Saber. “Já não é um hospital… Eles destruíram tudo”.
Os números

O serviço de defesa civil palestiniano afirma que está em curso uma operação oficial para entrar dez mil pessoas desaparecidas. Apesar do cessar-fogo, o número de mortos em Gaza continua a aumentar: os médicos relataram que 62 corpos foram encontrados nas últimas 24 horas, elevando o número de mortos para 47 mil.

De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), 12 mil pessoas precisam ser transferidas com urgência para outros locais para tratamento urgente.Outras 110 mil pessoas estão feridas, muitas têm lesões que vão mudar as suas vidas.

A ajuda humanitária chega finalmente. No domingo, 630 camiões entraram na Faixa de Gaza, 315 veículos dirigiram-se para o norte de Gaza que Israel isolou quase completamente.
 

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No entanto, Telavive desmente ter isolado intencionalmente aquela zona ao impedir o fornecimento de ajuda humanitária, culpa as agências humanitárias pelos atrasos e acusa o Hamas de desviar a ajuda.

Durante os ataques israelitas, as agências humanitárias alertaram para o facto de nove em cada dez pessoas não terem acesso a comida.
 

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De acordo com a ONU, o número mínimo de camiões por dia necessários para conter a crise humanitária na Faixa de Gaza é de 500 veículos que devem chegar todos os dias da primeira fase de seis semanas do cessar-fogo.
A reconstrução

Questões como a reconstrução de 60 por cento dos edifícios e quem vai governar a Faixa de Gaza devem ser abordadas nas negociações programadas para o início de fevereiro.

As Nações Unidas estimam que a remoção de mais de 50 milhões de toneladas de escombros deixados pelos bombardeamentos de Israel poderia levar 21 anos a concluir e custar mais de mil milhões de euros.


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Quanto às infraestruturas de saúde, a Organização Mundial da Saúde estima que restaurar os serviços médicos custará dez milhões de dólares, uma vez que metade dos 36 hospitais do território palestiniano está a funcionar parcialmente.

Números e estimativas à parte, a poeira é a primeira de todas as testemunhas que acompanha os que regressam a algum lugar, destruído ou não.
 

Israelitas assistem à libertação de reféns do Hamas | Crédito: Reuters


Palestinianos aguardam libertação de prisioneiros por Israel | Crédito: Reuters

Uns refugiados, outros sequestrados. Ambos são reféns do ódio.
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