China expande capacidades nucleares. É o fim da política de "dissuasão mínima"?

por Andreia Martins - RTP
Fotografia de arquivo, 1 de outubro de 2009, no 60º aniversário da fundação da República Popular da China. Soldados do Exército de Libertação do Povo desfilam ao lado de mísseis com capacidade nuclear. David Gray - Reuters

Nas últimas décadas, a China adotou a postura de "dissuasão mínima", com reduzido poderio nuclear comparativamente a outras grandes potências, como a Rússia ou os Estados Unidos. No entanto, cientistas e especialistas alertam que Pequim tem aumentado o número de ogivas e silos com capacidade nuclear. Só no último mês foram identificadas duas novas bases com centenas de silos nas regiões de Gansu e Xinjiang. O Pentágono estima que o stock chinês de armas nucleares irá "pelo menos duplicar" na próxima década e os especialistas consideram que este é o mais relevante desenvolvimento no âmbito do nuclear desde o fim da Guerra Fria.

Desde que se assumiu como potência nuclear, nos anos 60, que a China tem adotado historicamente uma posição mais discreta e contida em relação ao potencial atómico. Em contraste com Washington e Moscovo durante a Guerra Fria, Pequim orgulhava-se de evitar corridas ao armamento, mantendo apenas um nível reduzido de armas nucleares para fins de “dissuasão mínima”. Mas isso parece estar agora a mudar sob a liderança do Presidente chinês Xi Jinping, no poder desde 2013. 

De acordo com um relatório elaborado por especialistas da Federation of American Scientists (FAS), foi identificado um novo campo militar com cerca de 110 silos, que começou a ser construído em março na região de Xinjiang, não muito longe do campo de “re-educação” para uigures na cidade chinesa de Hami. “Os novos silos estão claramente a ser construídos de forma a serem encontrados”, escreve o New York Times.

Esta é a segunda descoberta deste tipo em menos de um mês, depois de um grupo de especialistas do James Martin Center for Nonproliferation Studies terem identificado um campo militar na província de Gansu, perto da cidade de Yumen, com mais 120 silos em construção.

Em conjunto, os dois novos locais representam “a expansão do arsenal nuclear chinês mais significativa de todos os tempos” e a mais importante em todo o mundo desde a corrida às armas entre Estados Unidos e Rússia durante a Guerra Fria, aponta a FAS.

A China, que operava há décadas cerca de 20 silos para mísseis balísticos intercontinentais (ICBM) F-5 de combustível líquido, aumenta exponencialmente as capacidades declaradas.

“Com 120 silos em construção em Yumen, outros 110 silos em Hami, uma dúzia de silos em Jilantai e, possivelmente, mais silos a serem construídos noutras áreas, (…) a Força de Foguetes do Exército de Libertação do Povo (PLARF) parece ter aproximadamente 250 silos em construção - mais de dez vezes o número de silos ICBM em operação”, adiantam os investigadores.
“O nível mínimo pode ser alterado”

Este novo poderio nuclear da China, com mais de 200 novos locais de armazenamento de mísseis, ultrapassa o número de silos preparados para mísseis balísticos intercontinentais da Rússia e é “mais de metade” da capacidade total dos Estados Unidos para armazenar a força ICBM.

O Stockholm International Peace Research Institute, organização que estuda e monitoriza a segurança internacional, estima que a Pequim tenha cerca de 350 ogivas nucleares, ainda assim muito abaixo dos Estados Unidos (5.550) ou da Rússia (6.255).

No entanto, a China tem alargado capacidades nos últimos anos, já que em 2006 o país contava apenas com 145 ogivas nucleares. O Pentágono antevê que a China “pelo menos duplique” o atual potencial nuclear durante a próxima década.

“Este aumento é tudo menos ‘mínimo’ e parece fazer parte de uma corrida às armas nucleares para competir de melhor forma com os adversários da China”, escrevem Matt Korda e Hans Kristensen, autores do estudo da FAS, em referência à premissa de “dissuasão mínima” por parte de Pequim.

Nos últimos anos, as autoridades chinesas têm reiterado a promessa de não usar armas nucleares a menos que o país seja atacado em primeiro lugar, mantendo apenas “o nível mínimo necessário” de armas nucleares para “salvaguardar a segurança nacional”. Ou seja, não só assegurar que a China tem capacidade para responder a um ataque com armas nucleares, mas também um mínimo para dissuadir os adversários de potenciais ataques.

Neste contexto, o “mínimo” percecionado pelas autoridades em Pequim parece estar a mudar. “Os Estados Unidos querem que a China se mantenha na política de dissuasão mínima. Mas o nível mínimo pode ser alterado caso a situação de segurança da China se altere”, alertava o editorial do jornal estatal Global Times, a 2 de julho, pouco depois da descoberta do campo militar de Gansu ter vindo a público.

“Enfrentamos um ambiente e riscos diferentes em relação ao passado. O método para o cálculo do nível mínimo tem de ser diferente”, adianta.

O mesmo texto lembrava que os Estados Unidos têm “pelo menos 450 silos” e que o poderio nuclear e de dissuasão pode ser decisivo em caso de “confronto militar entre a China e os Estados Unidos sobre a questão de Taiwan”.
Poder a sério ou manobra estratégica
As revelações sobre o novo campo militar na China surgem na semana em que Estados Unidos e Rússia se reúnem em Genebra para o “Diálogo de Estabilidade Estratégica” entre as duas potências. O encontro arranca esta quarta-feira e a questão do controlo de armas deverá estar no topo da agenda.

Nos primeiros dias do mandato do Presidente norte-americano Joe Biden, a 26 de janeiro, Moscovo e Washington chegaram a acordo para o prolongamento por mais cinco anos do New START, até 5 de fevereiro de 2026. Antes, em 2020, a Administração Trump tinha procurado substituir este entendimento bilateral de redução de armas nucleares por um novo acordo que incluísse a China, o que Pequim rejeitou.

Vipin Narang, especialista em energia nuclear do Massachusetts Institute of Technology (MIT), salienta que esta demonstração de força por parte da China pode ser apenas isso mesmo. “Só porque se constroem os silos não quer dizer que se coloquem mísseis lá dentro”, refere ao New York Times.

O especialista adianta, no entanto, que este novo poderio dá “muitas opções” ao Presidente Xi Jinping: “Podem fazer com que os Estados Unidos visem muitos silos que podem estar vazios. Podem, por outro lado, encher esses silos lentamente, caso necessitem de aumentar o seu poderio. E adquirem poder na questão de controlo de armas”, acrescenta Narang.
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