Comissão de inquérito à covid-19. Boris Johnson defendeu morte de idosos para evitar confinamento

por Rosário Salgueiro, correspondente da RTP em Londres
Patrick Vallance tinha escrito que Johnson defendia “que as pessoas mais velhas deviam aceitar o seu destino” WIktor Szymanowicz via Reuters

O Reino Unido instaurou uma comissão de inquérito para examinar a resposta e o impacto do país à pandemia da covid-19 e retirar lições para o futuro. Os investigadores querem perceber se o país político e os serviços públicos de saúde estavam preparados para enfrentar a pandemia. Querem detalhes da governação do então executivo liderado por Boris Johnson.

Esta semana de audições foi crucial para perceber os bastidores de Downing Street e o modo de liderança de Boris Johnson nesse período inédito.

Os investigadores ouviram altos funcionários, uns conselheiros independentes, outros homens de confiança levados para o gabinete por Boris Johnson. Dominic Cummings, antigo principal conselheiro do primeiro-ministro chamou todas as atenções. Conhecido por não ter tento na língua, saiu do executivo em guerra com Johnson e elegeu-o, depois, como o inimigo número 1.Cummings, ao ser questionado sobre a preparação do executivo para aplicar medidas pandémicas, acabou por confirmar a impreparação total e reafirmou a veracidade das palavras escritas num diário do principal conselheiro científico do governo do Reino Unido durante a pandemia.

Sir Patrick Vallance tinha escrito que Johnson defendia “que as pessoas mais velhas deviam aceitar o seu destino, deixassem os jovens seguir com a vida; que o antigo primeiro-ministro considerava que era tudo patético e que a covid é apenas a forma natural de lidar com os idosos”.

Estas palavras foram confirmadas por outro alto funcionário ouvido em inquérito. O ex-diretor de comunicação de Downing Street contou que quando discutiam dados que mostravam que “quase ninguém com menos de 60 anos vai para o hospital (quatro por cento) e desses praticamente todos sobrevivem”, Johnson até brincou: “Apanhe covid e viva mais”.

Cummings, na longa inquirição, confirmou que o antigo chefe do governo, vencedor das eleições em 2019, não “conseguia perceber a diferença entre as fontes verdadeiras e as fontes falsas”. Um dos exemplos que dá para sustentar esta afirmação situa-o em março de 2020. Boris Johnson partilhou com o conselheiro-chefe científico e com o diretor médico do executivo um vídeo de um homem a usar um secador de cabelo no nariz. No fim perguntou-lhes qual era a opinião deles. “Se o vírus desaparecia”.

Cummings reafirmou declarações escritas em documentos e milhares de mensagens de WhatsApp que mostram a resistência de Boris Johnson à imposição de restrições em março de 2020 e, depois, em dezembro do mesmo ano, que “demonstram a propositada negligência dos grupos de minorias étnicas e das vítimas de violência doméstica na preparação para as medidas de isolamento social”.

O responsável pela comunicação de Downing Street também acrescentou imagens a um cenário de caos e de incertezas. Lee Cains revelou que o estilo de governação de Boris Johnson não se adequa a uma crise daquelas dimensões. Poucas semanas antes de o país entrar no primeiro confinamento total, Johnson ainda comparava o vírus à “gripe suína”.Havia um plano de combate à pandemia, mas “com poucos detalhes. Era claramente apenas um dispositivo de comunicação”, reafirma Cains.

Depois foi depor Helen MacNamara, alto quadro da administração pública britânica, independente por natureza de funções. Mais calma do que os anteriores depoentes, trouxe as revelações mais cruas sobre o Estado britânico. Confirmou uma mensagem de março de 2020, revelada na comissão, em que escrevia a outros colegas de gabinete: “Acho que o país está a caminhar para um desastre. Acho que vamos matar milhares de pessoas”.

Reafirmou agora que essa constatação foi feita quando percebeu que o governo do Reino Unido não tinha nenhum plano real para lidar com uma pandemia global dessa natureza – “apesar de anos de garantias dizendo o contrário”.

Sobre o ambiente em Downing Street, MacNamara revelou que as mulheres sofriam tratamento sexista, que a “a cultura dominante era machista e muito problemática porque significava que o debate e a discussão eram limitados.

"Esta exclusão feminina era replicada nas medidas", reafirmou a antiga secretária adjunta do gabinete de Boris Johnson. Dando exemplos, disse que em 2020 havia “falta de atenção aos cuidados infantis, quando se pensou o encerramento das escolas; houve uma grave falta de reflexão sobre a violência doméstica e os mais vulneráveis, sobre os cuidadores e as redes informais, sobre como as pessoas cuidam umas das outras nas famílias e nas comunidades. Não houve reflexão suficiente sobre o impacto de algumas das restrições sobre as famílias monoparentais. Houve uma atenção desproporcional dada às atividades mais masculinas em termos do impacto das restrições e depois da diminuição das mesmas (futebol, caça, tiro e pesca)”.

Helen MacNamara, entretanto, abandou a administração pública britânica. Nesta audição revelou ainda não se lembrar de um único dia em que as regras sanitárias tenham sido cumpridas em Downing Street. “Não havia um padrão claro de trabalho normal com o senhor Johnson. O Gabinete do Governo e Whitehall desenvolveram alguns hábitos pouco saudáveis em termos de formas de trabalho”.

O ministro da saúde, em 2020, era Matt Hancock, um político entretanto caído em desgraça. Hancock foi, depois de Johnson, o maior alvo dos ataques de todos os que foram ouvidos na comissão de inquérito. Cummings confirmou uma mensagem ao primeiro ministro em que alertava que o responsável pela pasta da saúde “não está apto para este trabalho. A incompetência, as mentiras constantes, a obsessão com as manchetes dos jornais desviava a atenção do trabalho”

Cummings dava mais exemplos nas mensagens de WhatsApp: ”Ainda não há testes em lares de idosos, a inutilidade dele está a matar sabe Deus quantos”.

Avisos que não foram ouvidos por Boris Johnson. O antigo chefe do SNS britânico também foi questionado sobre o responsável máximo pela saúde dos britânicos e fez a revelação mais surpreendente sobre Matt Hancock.Simon Stevens revelou que o ex-ministro da Saúde achava que ele, e não os médicos ou o público, deveria decidir quem priorizar caso os hospitais ficassem sobrecarregados.

O atual primeiro-ministro era, em 2020, ministro das Finanças, e também tem sido referido nestes inquéritos na Comissão à covid-19. Cummings disse que Rishi Sunak estava preocupado e alertou Johnson sobre o impacto que as medidas teriam na economia. Uma antiga conselheira apelidou-o de “doutor morte” por ter incentivado as pessoas a irem a restaurantes quando o vírus já circulava e se esperavam medidas sanitárias.

Na segunda semana de novembro, a expectativa recai sobre a audição do antigo chefe de gabinete de Downing street e da ministra do interior em funções em 2020.

Boris Johnson, Rishi Sunak e Matt Hancock vão ter oportunidade de se defender. Vão ser ouvidos nesta comissão de inquérito previsivelmente antes dos trabalhos serem interrompidos em dezembro, para as férias de Natal.

De qualquer modo, a semana não foi fácil para as famílias das vítimas da covid-19 que tiveram de ouvir estes responsáveis. No Reino Unido, morreram mais de 230 mil pessoas com o novo coronavírus como causa de morte na certidão de óbito.
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