Como a desinformação influencia as leis eleitorais nos EUA

por RTP
Erin Scott - Reuters

A campanha de Donald Trump, que durante os últimos meses alegou que as eleições de novembro de 2020 foram uma fraude, não mudou os resultados que davam a vitória a Joe Biden, mas criou dúvidas e destruíu a confiança de muitos eleitores no Sistema Eleitoral norte-americano. Depois de o ex-presidente ter minado a confiança do público nas eleições, os legisladores republicanos estão a defender restrições de voto.

As alterações e os projetos de lei eleitorais nos Estados Unidos têm demonstrado como a desinformação pode influenciar e impulsionar a exigência de novas regras. Quando promovidas com assertividade e alguma frequência, as mentiras podem influenciar a confiança do público e os legisladores podem aproveitar as dúvidas da comunidade para sugerir grandes alterações legislativas.

Mas a desinformação e as mentiras, como a alegada fraude eleitoral que Trump tanto referiu, transformaram-se numa forma de reivindicar resultados eleitorais e até assegurar apoiantes.

Os apelos para mudar as leis eleitorais nos EUA com base na percepção do público não são novos: relatórios de 2001, 2005 e 2008, por exemplo, alertavam para as potenciais repercussões da desconfiança dos eleitores. Em 2008, o Supremo Tribunal manteve a lei de identificação do eleitor com base em parte no argumento de que aumentaria a confiança nas eleições estaduais.

Mas os dados provam que a confiança tende a cair um pouco depois de cada eleição entre os eleitores do partido derrotado, de acordo com Charles Stewart III, diretor do Laboratório de Dados e Ciência da Eleição do MIT.

Quando o deputado republicano Bobby Kaufmann, do Iowa, se referiu em fevereiro a um projeto de lei para restringir a votação antecipada, não tinha provas de que tinha havido, de facto, algum problema nas eleições de novembro que demonstrassem haver necessidade de estabelecer novas regras, novas leis eleitorais.

Mas muitas pessoas do Estado de Iowa acreditam que houve fraude, alegou na altura. E isso foi motivo suficiente para restringir a votação antecipada, reduzir o horário de votação no dia da eleição, impor novos limites ao voto por correspondência e proibir os condados de ter mais de uma urna eleitoral.

"A abstenção dos eleitores representa uma grande parcela do eleitorado que não acredita no nosso sistema eleitoral", disse Kaufmann, em defesa do projeto que foi sancionado em março. "E por qualquer motivo, político ou não, existem milhares e milhares de Iowans que não acreditam nos nossos sistemas eleitorais".

De acordo com o New York Times, a fraude eleitoral é extremamente rara nos Estados Unidos, e as autoridades de todos os Estados e a nível federal garantem que as eleições de 2020 foram seguras.
"Medo de fraude" promove restrinção eleitoral

Legisladores em pelo menos 33 Estados norte-americanos referiram, depois das eleições de novembro, ter diminuído a confiança do público na integridade do sistema eleitoral, como justificação para a aprovação de projetos de lei que restringem a votação, de acordo com uma investigação o NYT.

Em vários Estados - incluindo o Arizona, a Flórida, a Geórgia e o Iowa - os projetos já foram transformados em lei, e a as novas leis eleitorais no Texas também deverão ser aprovadas.

"É como uma máquina de movimento perpétuo - cria o medo de fraude a partir de rumores e, em seguida, restringe os votos das pessoas por causa da incerteza que criou", explicou ao jornal Michael Waldman, presidente do Brennan Center for Justice da New York University . "Os políticos, para fins partidários, mentiram aos apoiantes sobre a fraude generalizada. Os apoiantes acreditam nas mentiras, e então essa crença leva os políticos a justificarem: 'Eu sei que não é realmente verdade, mas ficaram todos preocupados'".

Os especialistas em direitos eleitorais e desinformação afirmam que este ano, depois das polémicas eleições entre Trump e Biden, verificam-se algumas diferenças importantes.

Em primeiro lugar, os esforços legislativos - medida tanto pelo número de projetos de lei apresentados como pela extensão das restrições que propõem - são superiores aos de ciclos eleitorais anteriores. Em segundo lugar, a queda da confiança no sistema eleitoral é diretamente atribuível a uma campanha de desinformação. Mas a queda na confiança dentro do Partido Repúblicano é muito mais acentuada do que alguma vez se observou em eleições anteriores.

"Temos de melhorar o processo quando centenas de milhares de pessoas em Wisconsin duvidam de que a eleição tenha sido realizada sem fraude", afirmou numa conferência de imprensa em janeiro o porta-voz republicano da Assembleia do Estado de Wisconsin.

"Mesmo que não haja motivo para essa suspeita, a perceção afeta a confiança, e isso é algo para se levar a sério", disse também o senador estadual da Carolina do Norte, o republicano Ralph Hise.

Num comunicado enviado ao Times, Hise ainda disse que seria errado afirmar "que os republicanos estão 'a desenvolver' argumentos de má-fé para tentar conseguir votos".

"A falta de confiança dos eleitores é real; a retórica em torno da eleição de 2020 certamente contribui para isso, mas existiu durante muitos anos antes de 2020 e influencia os eleitores de ambos os partidos", disse. "As autoridades eleitas têm a responsabilidade de responder ao declínio da confiança do eleitor, e não o fazer é perigoso para a saúde da nossa República".

Recorde-se que alguns dos argumentos sobre a queda da confiança do público nas eleições impulsionaram vários projetos de lei, inclusive na Geórgia, que promulgou uma lei abrangente que limita as votações antecipadas, exigindo a identificação do voto ausente e impedindo que se distribua comida ou água a pessoas na fila para votar.

"Após as eleições de 2018 e 2020, houve uma significativa falta de confiança nos sistemas eleitorais da Geórgia, com muitos eleitores preocupados com as alegações de fraude eleitoral", lia-se no projeto. "As mudanças feitas nesta legislação em 2021 são projetadas para resolver a falta de confiança do eleitor no sistema eleitoral em todos os lados do espectro político, para reduzir a responsabilidade dos funcionários eleitorais e para agilizar o processo da realização de eleições na Geórgia, promovendo uniformidade na votação".

Os especialistas e analistas políticos consideram que melhorar a confiança dos eleitores é uma meta legislativa sensata. Contudo, destacam o impacto da desinformação e as proporções, a nível legislativo, que os falsos argumentos promoveram.

"É absolutamente legítimo estar preocupado com a integridade das eleições", disse David J. Becker, diretor executivo do Centro para Inovação e Pesquisa Eleitoral. "Mesmo que a fraude não seja generalizada, é bom para os eleitores saberem que existem proteções para a evitar. O que não está certo é inventar ameaças falsas, ignorar as provas e agir de uma forma claramente planeada para conseguir um resultado partidário".

A melhor maneira de combater a falta de confiança do eleitor é "não produzir narrativas falsas" e "corrigir as narrativas falsas", rematou.
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