Coronavírus no porta-aviões. Terceiro capítulo da demissão do comandante

por Paulo Alexandre Amaral - RTP
O capitão Brett Crozier a bordo do USS Theodore Roosevelt Reuters

De fascículo em fascículo, há uma sombra que se abate sobre a história da exoneração do capitão Brett Crozier das funções de comandante do porta-aviões USS Theodore Roosevelt, que opera nas águas do Pacífico, após vir a público a sua missiva urgindo o Pentágono a agir face a um surto de covid-19 a bordo. Depois de o demitir do posto, alegando incapacidade de liderança em momento crítico, o secretário para a Marinha, Thomas Modly, viajou ontem para Guam, na Micronésia, onde aportou o T.R., para se dirigir à tripulação num misto de explicação e de reprimenda pela despedida em glória que os marinheiros fizeram ao seu líder. A má escolha de palavras nesse discurso obrigou-o horas depois a nova justificação.

A demissão do capitão Crozier do seu posto de comando no Theodore Roosevelt (super porta-aviões normalmente designado por T.R.) está a conhecer uma verdadeira escalada que já chegou à esfera de Washington, com o próprio Presidente Donald Trump a entrar na contenda.

A história começa com uma carta de quatro páginas enviada por Crozier à hierarquia quando se teve conhecimento de pelo menos três militares da sua tripulação infectados com o novo coronavírus. Uma carta que uns dizem ter valor facial de um comandante a lutar pela vida dos seus homens, mas a que outros atribuem uma decisão próxima da traição, ao revelar a debilidade de uma fortaleza fundamental para a posição norte-americana da região do Pacífico. A razão: a carta acabou por ir parar aos media.

O resultado da missiva não seria imediato, mas levou alguns dias depois, durante a semana passada, ao desembarque de dezenas de marinheiros infectados em Guam e à realização de testes um pouco por toda a população do navio de quase cinco mil tripulantes.

No final da semana passada, o comandante Crozier era destituído do posto por ordem do secretário para a Marinha. Há agora muitos intervenientes nesta discussão que justificam a decisão de Thomas Modly com uma tentativa de evitar a dissonância com a Administração Trump. Thomas Modly assumiu o cargo já na sequência de uma crise entre o presidente Trump e a chefia da Marinha a propósito do processo movido a um oficial que matou um prisioneiro quando destacado no Iraque, em 2017.

Nesta contenda de “militar versus civil”, refere o New York Times que a forma como a Administração está a lidar com a crise a bordo do T.R. reflecte a crescente dissensão entre as ideias do comando dos militares e aquelas dos seus chefes civis.

O jornal prossegue dizendo que actuais e antigos funcionários da Marinha e membros da Segurança Nacional vêem o episódio do Theodore Roosevelt como o quadro acabado da forma como a liderança civil desta Administração toma decisões questionáveis apenas pelo receio do que possa ser a resposta do presidente Trump.

O presidente optou desde o último sábado por um jogo de palavras em que atacou Crozier defendendo-o ao mesmo tempo. Sublinhou as suas qualidades, criticando no entanto a sua decisão de colocar a nu a situação no USS Theodore Roosevelt, para concluir com um “não crucifiquemos um oficial por ter tido um mau dia”.

Donald Trump já fez entretanto saber que não se manterá à margem da questão. Esta segunda-feira, o presidente dizia ter ouvido “coisas boas” do capitão Brett Crozier, que entretanto se soube estar também infetado com Covid-19.

“A sua carreira antes disto foi muito boa. Por isso, vou envolver-me e ver exatamente o que se passa porque não quero destruir alguém por ter um dia mau”, declarou Trump, comandandte supremos das forças armadas americanas, sugerindo mesmo que poderia devolver a liderança do navio a Crozier.

Mas, já depois da intervenção do presidente, a viagem de Modly até Guam, território norte-americano da Micronésia, e o discurso que o secretário de Estado fez soar nos altifalantes a bordo não ajudaram a resolver a questão. Entre críticas à tripulação por aplaudir Crozier enquanto este descia para o cais onde tinha à espera um carro para o levar de volta a casa, os epítetos de “demasiado estúpido ou demasiado ingénuo” que dispensou ao comandante num jogo de palavras demasiado político para a tripulação não ajudaram a clarificar a sua decisão de demitir Crozier.

“Se ele não achava que essa informação [a carta aos superiores] ia ser divulgada ao público nesta era da informação em que vivemos, então era demasiado ingénuo ou demasiado estúpido para ser o comandante de um navio como este”, foram as palavras de Modly.

Horas depois, já acossado por pedidos de demissão, Thomas Modly via-se obrigado a redobrados esclarecimentos, garantindo que não eram aquelas as qualidades que pretendia atribuir ao ex-comandante do USS Theodore Roosevelt.

“Deixem-me ser claro, eu não acho que o capitão Brett Crozier seja ingénuo nem estúpido. Penso e sempre acreditei o oposto”, escreveu numa nota pública na noite de ontem.

“Peço desculpa por qualquer confusão que esta escolha de palavras possa ter causado. Também quero pedir desculpas directamente ao capitão Crozier, à sua família e a toda a tripulação do Theodore Roosevelt por qualquer dor que os meus comentários possam ter causado”.

De nada valeu. Uma chuva de críticas e pedidos de demissão continuam a bater à janela de Thomas Modly.
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