Covid-19. Nova propaganda torna China líder mundial contra pandemia

por RTP
Pessoal médico e de enfermagem, de máscara, posa para uma fotografia durante a cerimónia de encerramento do último hospital improvisado em Hubei, a 10 de março de 2020. As faixas dizem "Vitória do país, vitória de Hubei, vitória de Wuhan" Reuters

A pandemia de covid-19 teve início na China no final de 2019 e tanto o Governo central chinês como os seus satélites regionais foram intensamente criticados pela estratégia de secretismo adotada de início. Meses depois, em meados de março 2020, com o surto controlado no próprio país e dezenas de outros países a braços com uma catástrofe em curso, Pequim está a recorrer à propaganda interna para limpar a imagem, assumindo-se como a salvadora do planeta.

Ao mesmo tempo, esgrime argumentos com os Estados Unidos. As duas maiores potências do planeta acusam-se agora mutuamente de responsabilidade pela pandemia, numa escalada de consequências imprevisíveis.

De acordo com um artigo publicado pela Al Jazeera, o envio de médicos e as doações de equipamentos de proteção, por parte do Governo chinês, a países como o Irão, a Itália ou a Grécia, fazem manchete em praticamente todos os jornais, na sua maioria controlados pelo Estado.

O Governo do Presidente Xi Jinping vai mais longe e assume que a sua estratégia ajudou a evitar uma pandemia ainda mais grave.

"Com a maior determinação em refrear a propagação do surto, a China ganhou tempo suficiente para o mundo se preparar para esta pandemia", afirmou aos repórteres o porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros da China, Geng Shuang, dia 19 de março, deixando no ar a sugestão de que as medidas draconianas impostas por Pequim serviram para abrandar a disseminação da doença em todo o mundo.

No dia anterior, 18 de março, Pequim celebrara a sua grande vitória da "guerra do povo" contra a pandemia, no primeiro dia do ano sem novos casos de infeção de sars-CoV-2, o vírus que causa a covid-19.
A nova narrativa
De forma quase unânime, a comunicação social desdobrou-se em elogios às medidas sem precedentes que permitiram controlar internamente em pouco mais de três meses a propagação da doença, e reservou para a China o papel de líder global na luta contra o novo coronavírus.

Apresentadores de noticias e jornalistas referiram a liderança e a "supremacia" do "sistema de combate chinês" à epidemia, dentro de portas, por ter posto em prática medidas impensáveis noutros países, incluindo a quarentena nacional e a vigilância em massa para impedir a circulação descontrolada de pessoas e seguir cadeias de infeção.

O foco das notícias mudou, da pressão para controlar o surto, para o esforço do país em providenciar outros países severamente afetados com profissionais de saúde e recursos.
A China tem enviado aviões carregados de equipamento médico, incluindo máscaras cirúrgicas e outro material de proteção, além de ventiladores, para os países europeus mais atingidos, assim como para o Médio Oriente e outros destinos.

A televisão estatal chinesa, CCTV, tem estado a passar em modo contínuo imagens da chegada dos médicos chineses a Bergamo, no norte de Itália ou à capital iraniana, Teerão.

O braço internacional da CCTV, a CGTN, e o Global Times, um tablóide em língua inglesa propriedade do Estado, multiplicam elogios à "generosidade" chinesa e à sua "liderança" durante a pandemia.


Qualquer comentário positivo por parte de líderes mundiais, como o do presidente da Sérvia, Aleksander Vucic, assim como responsáveis da Venezuela ou das Filipenas, a agradecer o apoio e conselhos de Pequim, tem eco garantido em todas as coberturas noticiosas.

A propaganda estende-se igualmente às redes sociais, incluindo no Twitter e no Facebook, ambas proibidas na China mas onde os órgãos de comunicação social estatais detêm contas.


Notícias de que os testes à presença do sars-CoV-2, comprados à China, por exemplo pela Espanha, não funcionam, são por seu lado abafadas. 
Passa culpas
A estratégia pretende esvaziar a critica interna e a raiva latente no país contra o Governo central, devido a um alegado encobrimento inicial do surto, que poderá ter aberto caminho à rápida disseminação da covid-19.

"Ao passar esta narrativa, a China livra-se da responsabilidade e consegue evitar a culpa pelo seu papel na propagação do coronavírus", afirmou, à Al Jazeera, Sahdi Hamid, um membro sénior do Brookings Institution in Washington, DC.

"Ao abafar informação sobre o vírus e permitindo-lhe propagar-se sem controlo nos primeiros dias e semanas cruciais, o regime colocou em perigo as mais de 100 nações que agora enfrentam os seus próprios surtos potencialmente devastadores", acrescenta.

"O Governo de Xi está a adotar agora uma política externa muito agressiva, adotando aquilo que Mao Zedong chamava a guerra de palavras - a guerra de propaganda", analisa por seu lado Anne-Marie Brady, professora na Universidade de Canterbury, e especialista em política chinesa.

Alguns analistas afirmam que a nova estratégia da máquina de propaganda chinesa teve origem na deterioração de relações entre Pequim e Washington, devido a uma guerra de tarifas.
O "vírus chinês"
Na semana passada, Pequim expulsou mais de uma dezena de jornalistas ao serviço de jornais norte-americanos
como o Wall Street Journal, o New York Times e o Washington Post, numa aparente reação ao facto de a Casa Branca designar os media estatais chineses como missões diplomáticas.

O Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, não tem hesitado por seu lado a referir-se ao sars-CoV-2 como o "vírus estrangeiro" ou, ainda mais frequentemente, "o vírus chinês".

Numa conferência de imprensa recente, Trump foi mesmo captado a corrigir a palavra 'corona' substituindo-a por "CHINÊS" à frente da palavra "vírus", no seu discurso.

O ministério chinês dos Negócios Estrangeiros tem criticado estas ações como "irresponsáveis" e "racistas".

E, mais importante, em vez de varrer para debaixo do tapete os comentários de Trump, como é seu hábito quanto a comentários críticos da linha do Partido Comunista Chinês, os media estatais estão a usar os argumentos do Presidente norte-americano para incitar à ira pública contra o líder dos Estados Unidos e, por extensão, contra todos os americanos.

Acusa igualmente a Casa Branca de orquestrar uma campanha internacional de desinformação para criar a ideia de que a China tentou ocultar a epidemia.

"Com os EUA a braços com as suas próprias fraquezas de credibilidade nos últimos anos, a falsa narrativa chinesa ameaça espalhar-se tão depressa como o coronavírus", considerou Matthew Karnitschnig, o principal correspondente europeu do jornal Politico.

A estratégia mais recente passa pela troca de acusações entre os dois países quanto à responsabilização mútua pela atual pandemia.
Teorias de conspiração
Desde o início de março, os media chineses têm insinuado que o vírus poderá ter tido origem noutro país - provavelmente os Estados Unidos. Lijian Zhao, um outro porta-voz da diplomacia oficial chinesa, tem sido uma das vozes mais ativas na transmissão desta ideia.

Na rede Twitter, afirmou que o Centro dos EUA para o Controlo de Doenças e Epidemia reconheceu ter diagnosticado mal como gripe em 2019 aquilo que seriam já casos de covid-19. "34 milhões infetados e 20 000 morreram", sublinhou.

"Se #COVID-19 começou em setembro último, e os EUA têm tido falta de testes, quantos teriam sido infectados? Os EUA deviam descobrir quando surgiu o paciente zero", acrescentou.


Já a 12 de março, Zhao tweetara a hipótese de que "pode ter sido o exército norte-americano quem trouxe a epidemia para Wuhan", o epicentro inicial da epidemia.

Nem a crítica geral à falta de provas a consubstanciar a acusação, faz Zhao recuar.

Na sua conta Twitter sucedem-se alegados testemunhos de pessoas que se lembram de ter adoecido em dezembro ou até antes, nos EUA, com sintomas semelhantes à covid-19.

Toda a internet chinesa, severamente controlada pelo Estado, está inundada de artigos titulados "O vírus não veio da China: os EUA trouxeram o vírus para a China como uma arma biológica".

Alguns destes artigos, plenos de teorias da conspiração, dizem que a introdução do vírus no país se deu durante os Jogos Militares Mundiais, realizados em Whuan em outubro de 2019.Os media estatais da China têm exigido ainda uma "investigação" ao papel norte-americano no aparecimento do surto.

A ideia tem apoiantes também entre a comunidade científica chinesa.

Chen Xuyan, um investigador baseado em Pequim, surgiu na CCTV a 18 de março, a sugerir que o rápido desenvolvimento das investigações a uma vacina para o sars-CoV-19 nos Estados Unidos se poderá atribuir à possibilidade de Washington já possuir o vírus há mais tempo, insinuando por inferência que os norte-americanos o tinham exportado para a China.

Insinuações semelhantes, mas contra a China, têm circulado nas redes sociais e media ocidentais, desde que Pequim anunciou estar próxima da obtenção ela mesma de uma vacina.

Essa teoria afirma que o novo coronavirus foi produzido em instalações militares chinesas, das quais se "escapou", os mesmos laboratórios agora responsáveis pela vacina.
Um "perigo"
A doença respiratória causada pelo novo agente patogénico foi detetada inicialmente em dezembro na cidade chinesa de Whuan, capital de Hubei, província industrial no centro da China.

Advertências públicas por parte de médicos, sobre uma nova epidemia de Sars, que estava a afetar dezenas de pessoas, foram abafadas e os seus autores ameaçados.

No final do ano, a epidemia era impossível de esconder.

A propagação ao resto do mundo foi rápida e, a 26 de março, contavam-se mais de 500 mil pessoas infetadas e mais de 21 mil mortos. A Europa transformou-se no novo epicentro da pandemia, com os óbitos em Itália e em Espanha a superarem os oficialmente registados na China.

Dia 24, a Organização Mundial de Saúde, OMS, alertava os Estados Unidos para a elevada probabilidade de se tornarem o centro seguinte da pandemia.

A OMS e os principais especialistas médicos afirmam que o vírus foi transmitido aos seres humanos a partir de um animal hospedeiro, sublinhando que as insinuações de queo patogénio não teve uma origem natural são "um perigo" para os esforços de contenção da pandemia.
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