Covid-19: Pandemia pode convergir com crise climática

por Inês Moreira Santos - RTP
Reuters

Em pleno contexto de pandemia de Covid-19, têm sido analisados os impactos na sociedade, na economia e até no meio ambiente, a nível global. A dois dias das comemorações do 50º aniversário do Dia Mundial da Terra, os especialistas revelam que, nas últimas semanas, as emissões de gases de efeitos de estufa diminuíram. Mas terá a Covid-19 impacto suficiente nas alterações climáticas?

Surgem nos media imagens de satélite que comprovam que o abrandamento das atividades económicas em muitos países, devido às medidas tomadas face à pandemia de Covid-19, tem contribuído para a diminuição da emissão de gases com efeito de estufa. Paralelamente, são divulgados relatórios que revelam que a poluição está em queda nas últimas semanas e, por isso, até a qualidade do ar melhorou.

As águas dos canais de Veneza, em Itália, já há muito que não estavam tão limpas e "azuis" como agora, e até os Himalaias voltaram a ser visíveis em algumas regiões da Índia, graças à diminuição da poluição.

Estes dados podem parecer o lado mais positivo da propagação do novo coronavírus por todo o mundo. Mas, na realidade, podem não ser suficientes e, no fim da pandemia, continuaremos a viver uma crise climática.

De acordo com uma investigação da Goldman Sachs, a crise pandémica da Covid-19, pode levar ao maior declínio já registado de emissões globais de dióxido de carbono, abrindo caminho a uma recuperação, a longo prazo, com níveis baixos de carbono.

A verdade é que as medidas de confinamento, adotadas por vários governos, e a suspensão da maioria das atvidades económicas em muitos países afetados pelo novo coronavírus, têm levado a uma queda na emissão de dióxido de carbono a nível mundial. Alguns especialistas consideram que as emissões podem descer até 5,4 por cento - o que representa um valor cinco vezes superior ao alcançado em crises anteriores.

Mas, segundo a mesma investigação, o problema está nos tempos que se seguem após o combate da Covid-19.

"As emissões relacionadas com a energia sempre recuperaram após uma crise", esclareceram analistas da Goldman Sachs, citando dados que mostram aumentos das emissões de dióxido de carbono no ano após todas as grandes crises desde a década de 1970.

"Desta vez, pode ser diferente, porque potencialmente já atingimos o pico de carbono relacionado com a energia", acrescentaram.

Estima-se que as emissões de gases com efeito de estufa atinjam o pico perto de 2030, de acordo com as estimativas do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas.

No entanto, um estudo da Agência Internacional da Energia (IEA na sigla em inglês), publicado no início de fevereiro, revelou que as emissões globais de dióxido de carbono relacionadas com a energia já tinham começado a diminuir, o que significa que o pico das emissões globais de gases de efeito de estufa já terá sido alcançado.

"Será necessário um esforço significativo para garantir que as emissões globais de gases de efeito de estufa não fiquem apenas no pico, mas também que diminuam rapidamente, a fim de atender às ambições climáticas", frisam os analistas da Godman Sachs.
Alterações climáticas no rescaldo da pandemia

O secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, disse recentemente que 2020 era "um ano crucial para mudar a maneira como lidamos com o clima".

"Se pretendemos limitar o aquecimento global a 1,5 graus Celsius, precisamos de demonstrar, a partir deste ano, como vamos conseguir, nesta década, reduções de 45 por cento nas emissões em relação aos níveis de 2010 e como alcançaremos emissões zero até meados de século", afirmou Guterres.

No contexto da pandemia, a maioria das reuniões e encontros tem sido cancelada, incluindo a Conferência das Nações Unidas sobre as Alterações Climática que em 2020 se ia realizar em Glasgow - o que para a ONU "dificulta" os esforços para cumprir a agenda climática.

"Mas, enquanto trabalhamos para conter e combater o vírus, também devemos procurar aproveitar todas as oportunidades para criar nossa agenda de ação climática", disse também o secretário-geral da ONU.
"Conto com todas as nações e partes interessadas para liderar a saída de nossa situação atual, promovendo um crescimento limpo e verde, uma transição justa, prosperidade e estabilidade para todos".

A verdade é que no rescaldo da crise financeira global de 2008, as emissões globais de dióxido de carbono derivados da combustão de combustíveis fósseis e da produção de cimento diminuíram 1,4 por cento. Mas, em 2010, aumentaram 5,9 por cento.

"As alterações climáticas são uma ameaça global maciça que ainda será uma realidade depois de superarmos esta pandemia e precisaremos de trabalhar muito para evitar que isto se torne algo que prejudica vidas e meios de subsistência", afirmou à CNBC Bob Ward, diretor do Instituto de Investigação Grantham sobre Mudanças Climáticas da Escola de Economia de Londres.

Para os cientistas climáticos a emergência climática devia ser reconhecida, à semelhança da pandemia da Covid-19, como uma crise global de saúde.

A Agência Espacial Europeia (ESA na sigla em inglês), revelou na quinta-feira passada que algumas cidades europeias registaram um declínio dos níveis de concentração de dióxido de nitrogénio, nas últimas semanas.

No entanto, os analistas alertam que as medidas de confinamento aplicadas para combater a pandemia não são um modelo a impor pelos governos para lidar com a emergência climática, uma vez que isso também teria graves impactos económicos, assim como o surto do novo coronavírus atualmente.

"A maneira de lidarmos com as alterações climáticas é continuar a melhorar os padrões de vida em todo o mundo e reduzir as emissões cortando o elo entre crescimento económico e poluição", esclareceu Ward.

O impacto real da crise pandémica no clima pode depender, de certa forma, das escolhas dos governos mundiais na hora de recuperarem as suas economias e, em particular, na dependência dos combustíveis fósseis para isso. Certo é que para cumprir com as metas do Acordo de Paris terá de se diminuir essa dependência.
Recuperação "verde" nas mãos dos governos

Na semana passada, numa conferência online sobre "Alterações Climáticas e Covid-19", promovida pela Comunidade Intermunicipal do Algarve (AMAL), Filipe Duarte Santos, investigador da Universidade de Lisboa e coordenador do Plano Intermunicipal de Adaptação às Alterações Climáticas (PIAAC) do Algarve, relativizou o impacto positivo que a pandemia está a ter no ambiente por via da redução dessas emissões contaminantes e adiantou que é esperada "uma diminuição, neste ano de 2020, de 1.600 milhões de toneladas de CO2".

"Era necessário que todos os anos, incluindo o atual e desde 2015, as emissões se reduzissem 6 por cento por ano, por isso estão a ver a enormidade do desafio que a humanidade tem para resolver este problema", alertou, antecipando que, após a pandemia, possa haver também "um aumento do consumo de combustíveis fósseis" que prejudicará essas metas e o ambiente.

Aumento dos eventos extremos de precipitação e do nível médio do mar, aumento de temperatura e dos períodos de ondas de calor, diminuição dos níveis de precipitação e dos recursos hídricos são problemas que, segundo os especialistas, podem agravar-se até ao final deste século caso a realidade atual não se altere.

O presidente da AMAL, António Pina, no encerramento da mesma conferência expressou estar pouco otimista no que toca à "preocupação que os governos e a população vão ter no próximo ano ou dois sobre o problema das alterações climáticas", considerando a necessidade de resposta a problemas mais básicos criados pelo impacto económico da pandemia de Covid-19.

"Vamos viver um período muito difícil do ponto de vista social e económico, que ninguém sabe neste momento medir – há um mês era um, daqui a um mês será outro – e vai fazer com que os governantes e a comunicação social estejam mais preocupados com temas como a saúde, a segunda vaga ou a vacina e se afastem, pelo menos no próximo ano, deste tema das alterações climáticas", considerou.

A realidade nos Estados Unidos, por exemplo, é que os efeitos das alterações climáticas vão convergir com os efeitos da pandemia provocada pelo novo coronavírus, avançam dois especialistas no Guardian.

Numa altura em que o país já tem milhões de desempregados, devido à suspensão das atividades económicas durante o surto, e milhares de mortos pela Covid-19, acrescentam-se outras preocupações: a época dos incêndios na Califórnia - que começa em abril, geralmente -, as inundações recorrentes num terço do país durante a primavera, e a probabilidade de furacões no próximo verão.

Para estes especialistas, o investimento "verde é a única opção para uma transição suave para a economia verde do século XXI", uma vez que "o investimento verde é possívelmente a melhor maneira de criar bons empregos por meio de investimento público".

"Para enfrentar todas estas crises de uma só vez, precisamos de um estímulo verde que crie empregos e eleve comunidades de maneiras que também reduzam a poluição de carbono, aumentem a resiliência e desenvolvam uma economia justa e moderna", consideram os investigadores.
Ambientalistas defendem "estado de emergência climática" depois da pandemia
Os movimentos Fridays for Future, 2020 Rebelión por el Clima e Climate Alliance convocaram uma manifestação virtual para 24 de abril em que pretendem lembrar que, apesar da crise sanitária da Covid-19, "a crise climática permanece uma realidade".

"A crise climática permanece uma realidade e, apesar de formalmente declarada por muitas instituições, ainda não é reconhecida como tal por alguns líderes, que optam por ignorar as indicações científicas através da inação", refere um comunicado divulgado pelas organizações de ativistas climáticos.

Os ambientalistas afirmam que, uma vez terminado o estado de alarme declarado a propósito da crise pandémica de Covid-19, o retorno à normalidade deve "colocar o meio ambiente e as pessoas no centro e levar em conta critérios de justiça social e climática".

É urgente que o retorno à vida quotidiana seja realizado com "uma drástica redução nas emissões de gases com efeito estufa", alertam os ambientalistas.

"Será necessário assumir o estado de emergência climática e tomar medidas ambiciosas e drásticas", concluem.

Recorde-se que esta quarta-feira, dia 22 de abril, se comemora o 50.º Dia Mundial da Terra e, uma vez que na maioria dos países estão impostas medidas de confinamento e proíbidas quaisquer reuniões ou encontros, os ativistas têm promovido celebrações e ações ambientais por vias virtuais e através de aplicações, como a Earth Challenge 2020.
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