Curdos acusam EUA de traição depois de terem combatido o Estado Islâmico

por RTP
Goran Tomasevic, Reuters

Os combatentes da guerrilha curda instalada no norte da Síria acusam Washington de os abandonar à sua sorte depois de terem entrado na frente que combateu o Estado Islâmico. As críticas curdas surgem depois de a Administração norte-americana ter anunciado a retirada das suas tropas instaladas na fronteira síria, com a Turquia a ameaçar uma grande investida contra os curdos.

De acordo com Ancara, os turcos estarão a preparar uma operação militar no norte da Síria para criar uma zona de segurança na região, a leste do rio Eufrates, para a qual terão recebido “luz verde” dos Estados Unidos, apesar de não haver o envolvimento de tropas norte-americanas na intervenção.

A operação terá sido confirmada através de um contacto telefónico entre o Presidente Donald Trump e o seu homólogo turco Recep Tayyip Erdogan. “As forças norte-americanas não apoiarão nem se envolverão na operação. E as [nossas] forças que derrotaram o Estado Islâmico já não estarão na região”, explica um comunicado da Casa Branca, após o anúncio da operação pelo presidente turco.

Erdogan anunciou no sábado a iminência de uma intervenção contra as milícias curdas do YPG (Unidades de Proteção do Povo) e o seu braço político, o PYD (Partido da União Democrática), em território sírio: “Demos as ordens necessárias”.

O gabinete do Presidente Erdogan fez saber que a intenção é “limpar” a zona de elementos terroristas para estabelecer essa zona de segurança e poder fazer regressar cerca de dois milhões de deslocados sírios de forma segura. No mesmo passo, Ancara procura também reforçar a segurança da sua fronteira, acrescentou já esta segunda-feira o ministro dos Negócios Estrangeiros Mevlut Cavusoglu.

Os Estados Unidos estão a ser atacados de ambos os lados: pelos turcos, que esperavam ter a ajuda norte-americana para a operação; mas mais ainda pela guerrilha turca que, durante anos, sacrificou os seus homens e mulheres – 11 mil combatentes, de acordo com a sua própria contagem – na luta contra as brigadas do Estado Islâmico que chegaram a dominar vastas zonas da Síria.

Os curdos encaram a retirada dos norte-americanos como uma facada nas costas depois de terem combatido do mesmo lado da barricada, não deixando contudo de ser verdade que o xadrez estratégico internacional (Washington, Moscovo e Damasco) que envolvia a confrontação do Estado Islâmico contra milícias curdas ou forças de libertação sírias tenha obrigado desde 2014 a uma grande ginástica política para se poder entender o conflito na Síria e no Iraque.

Agora, e apesar de inicialmente terem mencionado, além da eliminação do Estado Islâmico, que barrar a influência dos iranianos era outro dos seus objectivos na região, os Estados Unidos tratam este assunto como uma questão burocrática, quase de ordem contabilística: Ancara responsabiliza-se pelos prisioneiros do Estado Islâmico e Washington sai de cena para não estorvar a ofensiva turca. Pelo caminho, aponta o The Jerusalem Post, abandona os parceiros de quatro anos de luta e fecha os olhos a mais uma operação de limpeza étnica.

Esta Administração é diferente daquela (Obama) que deu ordem para a intervenção das tropas norte-americanas na guerra contra o Estado Islâmico e há acólitos de Trump que acusam Barack Obama de se ter colocado demasiado ao lado dos curdos, em particular do PKK (Partido Trabalhista do Curdistão). De qualquer forma, Donald Trump já veio alertar Erdogan de que destruirá a economia turca se [a intervenção] passar do que considera serem “limites razoáveis”.

A situação reveste-se de detalhes sensíveis, já que – ainda que Ancara coloque todos os movimentos curdos no mesmo saco – o PKK é considerado uma organização terrorista pelos Estados Unidos e União Europeia, mas o mesmo não acontece com as YPG ou o PYD.

Acusando as forças americanas de romperem compromissos na Síria, as forças curdas que dominam a região mostraram o forte desagrado com que receberam as notícias dos últimos dias: “Tínhamos garantias dos Estados Unidos de que não permitiriam qualquer intervenção militar dos turcos na região (…) As declarações [das entidades norte-americanas] constituem uma surpresa e podemos dizer que as recebemos como uma facada nas costas”, referiu um porta-voz curdo à al-Hadath, uma cadeia televisiva da região.

O novo posicionamento dos Estados Unidos negociado por Trump com Erdogan desafia também a estratégia defendida por membros da Defesa e do Pentágono, que apostavam na manutenção de uma força norte-americana na região, quer para continuar a conter as bolsas ainda existentes do Estado Islâmico, quer para contrabalançar a influência da Rússia e do Irão.

Ainda em termos internos, a decisão de Trump também mereceu críticas de democratas e republicanos por – consideram – abrir caminho a um massacre dos curdos e deixar assim uma mensagem duvidosa aos aliados com que os americanos contam em todo o mundo.
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