Duas semanas de protestos na Polónia podem ter travado nova lei do aborto

por Carla Quirino - RTP
Marcha pelas mulheres, em Varsóvia Agencja Gazeta - Reuters

Desde o colapso do bloco de leste, em 1989, que não se realizava uma manifestação de proporções semelhantes. Desde 22 de outubro, milhares de pessoas saem às ruas na Polónia para protestar contra a - quase - proibição da interrupção voluntária da gravidez. Passadas duas semanas, o Governo ultraconservador adiou a publicação do novo diploma por tempo indefinido.

"Meu corpo, minha escolha" ou "o meu corpo não é um caixão" são mensagens que se lêem em cartazes empunhados por polacas, em duas semanas consecutivas, contra a imposição das novas regras restritivas.

Este movimento foi engrossando ao longo dos dias por todo o país desde 22 de outubro, dia em que o Tribunal Constitucional polaco anulou a norma que permitia a interrupção voluntária da gravidez em caso de malformação do feto. Ou seja, o novo texto proíbe a prática de abortar legalmente por anomalias fetais, o que desde 1993 era possível.

A restrição na lei provocou tamanha indignação que o movimento cresceu em todo o país, ultrapassando mesmo as fronteiras. Em quase toda a Europa ocorreram também manifestações de mulheres solidárias com os protestos na Polónia.


Os números crescentes da Covid-19 não travaram as milhares de pessoas nas ruas. Nem a pandemia, nem o gás lacrimogénio da polícia retirou o ímpeto à multidão.

Além de uma greve, no dia 28 de outubro, que mobilizou cerca de 430 mil pessoas por todo o país, segundo o porta-voz da polícia, Varsóvia foi palco da maior marcha desde o fim da Guerra Fria, no dia 30. Mais de 100 mil pessoas marcharam na capital.

Donald Tusk, líder do Partido Popular Europeu e ex-presidente do Conselho Europeu, associou-se ao movimento e regista a marcha em Varsóvia. "A Polónia ainda não está perdida".


A Polónia é um país de maioria católica com um Governo ultraconservador no leme. A Constituição polaca integra uma das leis de aborto mais restritivas do Continente Europeu.

Em 2016 e 2018, o Governo tinha já tentado impor a proibição da prática do aborto em sessão parlamentar. A onda de protestos conseguiu travar este desígnio. Em 22 de outubro, o decreto veio pela mão do Tribunal Constitucional.
  Se a interrupção da gravidez depende da saúde do feto, está-se a promover práticas eugénicas, o que corresponde a uma discriminação direta e por isso é considerada inconstitucional, afirma Julia Przylebska, presidente do Tribunal Constitucional, citada pela Reuters.
Jaroslaw Kaczynski, líder da formação dominante no Governo polaco, Partido Lei e Justiça (PIS) , defende que os fetos sem possibilidade de sobrevivência fora do útero devem terminar em parto, para poderem ser batizados e enterrados.

"É um dia triste para os direitos das mulheres. Tornar quase todos os abortos ilegais é igual a banir e a violar os Direitos Humanos", afirmou a Comissária para os Direitos Humanos do Conselho da Europa, Dunja Mijatovic.

Esta decisão "traduz-se em abortos clandestinos ou [realizados] no estrangeiro para quem pode pagar e mais sofrimento para as outras", acrescentou a comissária no Twitter.

Números do Ministério polaco da Saúde indicam que, em 2019, foram realizados 1110 abortos legais na Polónia, a maioria (1074) devido a malformações do feto. Clandestinamente ou em clínicas fora do país, realizam-se quase 200 mil abortos por ano, números estimados por organizações não governamentais de apoio à mulher.

Andrzej Duda, Presidente da Polónia, declarou no final de outubro que as mulheres deveriam ter o direiro a escolher abortar em alguns casos.Em entrevista à rádio RMF FM, o Presidente referiu-se favoravelmente à proibição do aborto em casos de fetos com defeitos congénitos não letais. Terá sido um primeiro sinal das autoridades polacas para neutralizar os protestos.

O novo texto permite apenas a prática do aborto em caso de gravidez proveniente de violação, incesto e se existir risco para a vida da mulher.

A passada segunda-feira seria a data em que o Governo deveria publicar a decisão do Tribunal Constitucional, para que entrasse vigor a normativa mais restritiva. Não o fez, adiando indefinidamente a publicação.
Michal Dworczyk, chefe de gabinete do primeiro-ministro, citado no Guardian, explica que "o assunto ainda está em debate" e acrescenta: "É uma situação que gera muitas emoções, é importante dar um pouco de tempo para que o diálogo se estabeleça e trabalharmos uma nova posição".

A decisão judicial que abre caminho à proibição quase total da interrupção voluntária da gravidez sublinhou ainda mais a divisão na sociedade polaca.

A violência estalou entre grupos de extrema-direita e os manifestantes contrários às intenções do Governo. A Igreja Católica saiu em defesa da decisão do Tribunal Constitucional.

Para além da capital, milhares de pessoas prometem não desmobilizar e encher avenidas e pontes de Cracóvia, Wroclaw, Szczecin, Lodz e Pozna, mantendo-se firmes na luta pela liberdade de escolha.
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