Enfermeiros estrangeiros do serviço nacional de saúde britânico presos por "cláusulas milionárias"

por Inês Moreira Santos - RTP
Kathleen Flynn - Reuters

Um relatório recente divulgou que mais de 27 mil enfermeiros e parteiros deixaram o Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido (NHS - National Health Service em inglês) em 2021, devido à cada vez maior pressão laboral, à pandemia da Covid-19 e às dificuldades em cuidar de todos os pacientes. Grande parte destes profissionais de saúde são estrangeiros e, quando pretendem mudar de emprego ou ir trabalhar para os sistemas de saúde privados, sentem-se presos pelos contratos que os obrigam ao pagamento de altas indemnizações para deixar o NHS.

O Conselho de Enfermagem e Obstetrícia britânico divulgou, na quarta-feira, que no último ano aumentou o número de profissionais de saúde que deixaram o NHS – o que tem gerado preocupação, principalmente devido à escassez de enfermeiros no Reino Unido. No mesmo relatório, citado pelo Guardian, os dados revelam que o sistema de saúde britânico está a tornar-se cada vez mais dependente de enfermeiros e parteiros estrangeiros, continuando reduzido o recrutamento de profissionais nacionais - ou que, pelo menos, tenham estudado em território britânico.

Não há sistema de saúde que sobreviva sem enfermeiros e, quando há dois anos começou a pandemia, o papel destes profissionais no NHS começou a ser mais reconhecido. Nos últimos anos, foram muitos os profissionais oriundos de países da União Europeia que - atraídos por melhores salários, pela estabilidade e pela possibilidade de terem um nova vida em território britânico - foram contratados para trabalhar no sistema nacional de saúde do Reino Unido.

Mas com a pandemia, o Brexit e a pressão que sente quem está na linha da frente foram muitos os que quiseram sair do NHS, e até mesmo do Reino Unido. Porém, aponta o jornal britânico, são muitos os enfermeiros que estão presos aos empregos por “cláusulas nos seus contratos que exigem o pagamento de milhares de libras” para poderem despedir-se.

Em alguns casos os enfermeiros têm de cumprir pelo menos cinco anos de contrato ou pagar até 14 mil libras se quiserem rescindir o contrato mais cedo.
Letras pequenas dos contratos e “cláusulas de reembolso”
No podcast do Guardian Today in Focus, Becca Ajman contou como as “letras pequenas” dos contratos mantém os profissionais de saúde presos aos NHS. Enfermeira de profissão e de nacionalidade turca, Becca pensou inicialmente em estabelecer-se no Reino Unido e levar os filhos com ela. Sempre quis mudar-se para terras britânicas pelas “oportunidades” e pela experiência de viver num país com um clima diferente.

Eu não fazia planos de me mudar. Foi depois de me mudar [para o NHS] que percebi que não ia funcionar para mim. Eu precisava de sair”, relatou.

E, embora soubesse que teria de pagar uma indemnização por rescindir o contrato antes do tempo, a enfermeira não imaginava o valor que lhe ia custar a mudança de emprego.

“Eu sabia que teria de pagar alguma coisa, mas não sabia quanto”.

No NHS, e mesmo no setor privado, vários profissionais de saúde de origem estrangeira estão a ter dificuldades em sair do emprego por causa “das letras pequenas dos contratos”, chamadas de “cláusulas de reembolso” que, como explicou a enfermeira, servem para garantir que os enfermeiros imigrantes não deixam as funções mais cedo do que o previsto.

Becca chegou a uma pequena cidade no sul de Inglaterra, em setembro de 2020, para começar a trabalhar como enfermeira num hospital dos NHS. Embora fosse um objetivo e estivesse entusiasmada, admitiu que o “choque cultural” foi grande. Além disso sentia falta dos três filhos, que deixou na Turquia, e achou que o “clima não era tão atrativo” como pensava.

Outro choque foi o próprio trabalho porque os turnos eram bastante longos e muito exigentes”, contou, explicando que ao fim de dez meses decidiu candidatar-se a uma vaga no NHS mas em Londres, porque tinha alguns familiares a residir na capital britânica.

Mas mudar de emprego, mesmo dentro do NHS, foi mais difícil do que pensava. Segundo constava nas letras pequenas do seu contrato, se rescindisse antes do final de dois anos em funções tinha de “reembolsar 100 por cento de todos os custos” do recrutamento do estrangeiro.

No caso de Becca, o processo tinha custado cerca de 3.500 libras. Mas como já tinha trabalhado alguns meses para o NHS pensou que o valor seria mais reduzido.

“Eu contribuí muito, principalmente porque me mudei durante a pandemia. Mas um contrato é um contrato (…). Uma vez assinado, não pode ser alterado”,
lamentou. “Não é justo, mas eu já tinha assinado. Eu concordei, por isso tenho de pagar”.

Esta cláusula no contrato dos enfermeiros estrangeiros que vão para o Reino Unido estipula que estes profissionais não podem demitir-se num período de dois ou três anos, ou então terão de pagar todos os custos associados ao seu recrutamento. No caso de Becca, o plano de pagamento era por dois meses e, nesse período, não ia receber salário porque ia ser deduzido para saldar essa “divida”.

Contudo, tanto os serviços do NHS como do setor privado afirmam que, na maioria das vezes, o custo de recrutamento de profissionais de fora custa entre 10 mil a 12 mil libras, o que inclui os voos dos candidatos e futuros profissionais. Podem também incluir o pagamento do visto e do ensino de idioma.

Segundo Becca, há casos em que ao início o serviço de saúde ajuda com o alojamento dos enfermeiros vindos de fora, o que aumenta o valor do reembolso caso rescindam o contrato mais cedo.

“Dizem que precisam de ter essas cláusulas em vigor para salvaguardar o seu investimento”, explicou a enfermeira ao Guardian.

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