Entretanto, Putin...

por Felipe Pathé Duarte, comentador RTP

...dispõe as peças no tabuleiro. Moscovo não perde uma oportunidade de se posicionar. A vertigem dos acontecimentos desviou-nos o foco para Trump e para o EUA.

Mas, no início de Julho vai haver um referendo sobre reformas constitucionais, que permite a Putin manter-se no poder até 2036. Na semana passada foi aprovada a doutrina de dissuasão nuclear da Rússia. E em meados de Maio ficámos a saber da presença do crescente envolvimento russo na guerra civil da Líbia, ao lado do exército rebelde do Marechal Hifter. Estes três factos, embora isolados, refletem a grande estratégia do Kremlin. E devemos prestar-lhe atenção, porque a médio/longo prazo vão afectar-nos.
Putin no poder até 2036O ex-agente do KGP tem minimizado a intenção de estender a sua presidência. Nada nos garante que ele concorra em 2024. Porém, sem um sucessor designado, é provável que avance para outro mandato e prepare um substituto. Estas mudanças constitucionais preparam oficialmente o caminho para que isso aconteça. A possibilidade de atrasar a saída de Putin adia as incertezas russas acerca da transição sob um novo presidente. E garante estabilidade política e económica.

· A alterações constitucionais também implicam limites mais rígidos a futuros presidentes. Assim como uma maior interdependência dos ramos do governo. Com isto, reduz-se o impacto de um presidente pós-Putin – limitam-se as perturbações e a concorrência entre facções.

· Mas vejamos: prolongar Putin é garantir a continuidade das políticas que viram a Rússia recuperar seu estatuto de grande poder.

· Internamente, o Kremlin manterá o foco no crescimento doméstico, na diversificação e na auto-suficiência (em hidrocarbonetos e tecnologia). Externamente, a mira será restabelecer a Rússia como uma grande potência. À medida que o poder militar convencional diminuiu, Putin priorizou as capacidades nucleares e de dissuasão, apoiando aliados por todo mundo com assistência militar e financeira – Síria, Líbia, Moçambique, RC Africana, Nicarágua, Venezuela, Ucrânia... Por isso, as escaladas e impasses dos vários conflitos por procuração vão manter-se.
Nova estratégia de dissuasão nuclearNa semana passada, Putin aprovou a nova doutrina de dissuasão nuclear. Tem um caráter defensivo. O Kremlin admite um ataque nuclear em caso de agressão externa ou ameaça à sobrevivência do Estado. Mas, associados a esta questão, devemos ainda considerar mais dois acontecimentos. Dias antes foi lançado o quarto satélite Tundra que reforça a capacidade de dissuasão nuclear russa. Este sistema, que serve para detectar lançamentos de mísseis balísticos norte-americanos, não funcionava há seis anos. E no próximo dia 22 de Junho, a administração Trump, vai reunir-se com autoridades russas para discutir uma possível substituição ou extensão do Novo START (Tratado de Redução de Armas Estratégicas – que pretende limitar o arsenal nuclear das duas potências de uma forma paritária).

· A capacidade nuclear tem sido uma base da reivindicação do estatuto russo de potência global – e inclui medidas defensivas, como esta capacidade de alerta precoce, e sistemas de armas ofensivas.

· Entretanto, como parte dos esforços de modernização militar, o Kremlin apostou na dissuasão estratégica. Basta ver o recente míssil nuclear hipersónico Avangard – a “arma absoluta” da Rússia. Foram estas inovações que também contribuíram para o declínio do START I (Tratado de Redução de Armas Estratégicas), de 1994; ou dos START II e III (que nunca foram muito efectivos).

· Agora, vai ser muito complicada a extensão ou substituição do Novo START (de 2011), que expira em 2021 – Moscovo precisa de garantir uma política nuclear, numa espécie de equilíbrio que assegure a sua segurança e soberania estratégica.
A Rússia na guerra civil da Líbia No final de Maio foram divulgadas fotos de caças russos em duas bases aéreas controladas pelo exército rebelde do Marechal Hifter, na Líbia. Por um lado, este apoio fará com que o Governo do Acordo Nacional (GAN), reconhecido pela ONU, não vá para além de Trípoli. Por outro, dá vantagem a Moscovo na definição do futuro político deste país devastado pela guerra. Assim, vamos ter a Rússia e a Turquia (que apoia o GAN) a liderar potenciais negociações entre o Leste e o Oeste da Líbia. É a verdadeira, e perigosa, “ultrapassagem pela direita” aos desígnios da UE e dos EUA.

· O Marechal Hifter é um elemento crucial para o cumprimento da estratégia mediterrânica russa. Há muito que o Kremlin quer ter mais acesso aos mares quentes. E para ter uma presença naval mais forte fora do Mar Negro, os portos de Tobruk e Derna (na Líbia) surgem como alternativas às instalações navais de Tartus (na Síria).

· Depois da Guerra Fria, o Ocidente – em particular a França, Itália e o Reino Unido – tornou-se a principal influência externa no Norte da África. Estes esforços russos para estabelecer uma presença quase permanente na Líbia vão ser vistos como uma ameaça pela UE que, progressivamente, a Leste e no flanco sul do Mediterrâneo pode estar a sofrer um progressivo abraço do urso russo.
Nota finalA análise geopolítica implica ver para além da espuma dos dias. Os acontecimentos resultam de uma estrutura enquadrada numa grande estratégia. E esta, por regra, acompanha um pensamento filosófico-político que lhe dá corpo intelectual. Por isso, dificilmente se compreenderá Vladimir Putin sem se perceber a Quarta Teoria Política de Aleksandr Dugin – será que a Rússia continental como grande potência é uma “inevitabilidade existencial” para lá da pós-modernidade do Ocidente? Fica o repto para os mais curiosos...
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