"Escravatura moderna". Trabalhadoras quenianas denunciam abusos na Arábia Saudita

por Mariana Ribeiro Soares - RTP
Thomas Mukoya - Reuters

Nos últimos meses, têm aumentando as denúncias de várias trabalhadoras domésticas quenianas na Arábia Saudita. As migrantes dizem ser vítimas de abuso físico, mental e sexual por parte dos empregadores. Este é mais um exemplo de “escravatura moderna”, que as Nações Unidas estimam que atinja 50 milhões de pessoas em todo o mundo.

Os relatos de exploração laboral que chegam dos países do Golfo, nomeadamente da Arábia Saudita, não são novidade, mas uma onda de indignação gerou-se no Quénia no início deste mês depois de fotografias de uma jovem queniana, a trabalhar na Arábia Saudita, visivelmente frágil em termos de saúde, se terem tornado virais.

Diana Chepkemoi viajou para a Arábia Saudita no início do ano passado para trabalhar como empregada doméstica depois de ter sido forçada a abandonar a faculdade no Quénia por motivos financeiros.

A família de Diana diz que mantinha o contacto com a jovem com frequência, até recentemente Diana ter ficado incontactável.

“Fazíamos videochamadas frequentemente e ela parecia saudável, até em meados de julho ter ficado incontactável no WhatsApp durante uma semana”, disse uma irmã de Diana a meios de comunicação locais. “Entrei em contato com ela através de outra rede social, mas ela estava insegura e distante, quase com medo. Ela acabou por revelar que o patrão tinha confiscado o seu telemóvel e documentos”, acrescentou.

A irmã da jovem queniana afirma que Diana entretanto adoeceu e foi-lhe negado o acesso ao hospital e a medicamentos. “Ela disse que o chefe dela a maltratava, que estava doente e que não podia ir para o hospital e o seu estado de saúde estava a agravar-se. O chefe só lhe dava analgésicos", avançou.

“Tentamos entrar em contacto com o patrão, que disse que Diana ainda não completou os dias de trabalho conforme o contrato que ela assinou e agora mantém-na refém”, disse a irmã da jovem queniana.

O caso de Diana tornou-se viral e sob a pressão das redes sociais, o Governo queniano acabou por a repatriar, bem como outras trabalhadoras domésticas que estavam numa situação semelhante na Arábia Saudita.


Numa declaração no Twitter, Diana disse que a embaixada da Arábia Saudita deu informações falsas acerca do seu estado de saúde. "O contrato de trabalho estabelece que o empregador deve fornecer assistência médica gratuita adequada conforme e quando necessário a um empregado. Eu não sofria de nenhum problema de saúde, mas era submetida a maus-tratos. Desejo que o governo queniano tome medidas, porque muitos quenianos estão a sofrer no Médio Oriente", escreveu Diana.

Joy Simiyu, de 25 anos, tal como Diana, deixou o Quénia para ir trabalhar como empregada doméstica na Arábia Saudita. “Eu estava desesperada por um emprego”, disse Simiyu, que, tal como vários outros quenianos, viajou para o Médio Oriente em busca de trabalho, desencorajada pelas altas taxas de desemprego do país.

Agora de volta ao Quénia, Simiyu diz ter sido vítima de uma série de abusos enquanto estava na Arábia Saudita, afirmando que foi forçada a trabalhar em várias casas e privada de comida e descanso.

Em declarações a The Guardian, Simiyu disse que o seu empregador ameaçava não lhe pagar o salário alegando que ela “não estava a fazer trabalho suficiente para merecer o pagamento”, ou que seria pago no devido tempo, já que “ela não iria a lado nenhum”.
Reféns do sistema kafala
Simiyu contou ainda ter fugido de uma casa onde estava a trabalhar para ir até à agência que a recrutou, pedir para ser transferida para outra casa. A agência prometeu resolver a sua situação em dois dias, mas acabou por se alongar por semanas, e muitas outras mulheres estavam à espera há muito mais tempo.

Simiyu alega que os funcionários da agência mantinham as mulheres trancadas numa residência, fornecendo-lhes apenas uma refeição por dia e chantageando-as com a atribuição de um novo trabalho em troca de favores sexuais. Até há pouco tempo, o chamado sistema kafala, em vigor na Arábia Saudita, exigia que as empregadas domésticas obtivessem permissão do seu empregador caso quisessem mudar de emprego ou abandonar o país.

Este é o mesmo sistema que mantém reféns os trabalhadores migrantes no Qatar, que, para além de viverem em condições precárias e na miséria, estão ainda impedidos de mudarem de emprego ou de saírem do país graças ao sistema kafala.

Em março do ano passado, a Arábia Saudita iniciou a implementação de um novo sistema que permite aos trabalhadores estrangeiros mudarem de emprego quando os contratos existentes cessem, sem a necessidade de autorização dos empregadores. Os trabalhadores também passaram a estar autorizados a deixar o país sem a permissão da entidade empregadora.
“Escravatura moderna”
Fred Ojiro, da Haki Africa, uma organização de direitos humanos com sede em Mombasa, disse ao jornal The Guardian que estes casos consistem na chamada “escravatura moderna”.

De acordo com as estimativas da Organização Internacional do Trabalho (OIT) de 2021, existem 50 milhões de pessoas em situação de escravatura moderna, “que são forçadas a trabalhar contra a sua vontade ou a estar num casamento ao qual foram forçadas”, lê-se no relatório da OIT.

Os países do Golfo há muito que são alvo de queixas de violações dos direitos laborais. Estimativas da Confederação Sindical Internacional mostram que que mais de 2,1 milhões de mulheres que trabalham no serviço doméstico em toda a região estão em risco de exploração. Apenas este ano, a Haki Africa recebeu mais de 50 queixas de abuso por parte de trabalhadoras domésticas quenianas na Arábia Saudita.

Números avançados pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros do Quénia também revelam que pelo menos 89 quenianas, a maioria trabalhadoras domésticas, morreram na Arábia Saudita entre 2020 e 2021. A Arábia Saudita atribuiu essas mortes a “ataques cardíacos”.

Perante estas estatísticas, o Ministério dos Negócios Estrangeiros propôs a proibição do envio de trabalhadoras quenianas do serviço doméstico para a Arábia Saudita até que sejam implementadas medidas de proteção.

No entanto, o ministro queniano do Trabalho rejeitou a proposta, alegando que centenas de milhares de quenianos estão empregados na Arábia Saudita sob “condições favoráveis”.


Países como Uganda e Filipinas já proibiram o envio de trabalhadores domésticos para a Arábia Saudita devido a relatos de exploração laboral, mas mais tarde suspenderam as proibições. Assim como o Quénia, ambos os países recebem quantias significativas dos seus cidadãos que trabalham na Arábia Saudita.

Apesar disso, o governo queniano tomou algumas medidas para mitigar a exploração laboral, como verificar as agências de recrutamento de trabalhadoras domésticas e a assinatura de acordos de trabalho bilaterais com a Arábia Saudita.

No entanto, à medida que as denúncias de abuso físico, mental e sexual de trabalhadoras domésticas quenianas persistem, grupos de direitos humanos defendem que é urgente aplicar mais medidas.
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