Dívidas e miséria. A realidade dos trabalhadores migrantes no Catar

por Mariana Ribeiro Soares - RTP
Hamad I Mohammed - Reuters

A menos de dois meses do Mundial do Catar, surgem cada vez mais notícias que expõem a exploração laboral dos trabalhadores migrantes contratados para o programa de construção sem precedentes. Para além de viverem em condições precárias, os trabalhadores migrantes são obrigados a pagar altas taxas de recrutamento, vivem na miséria e estão reféns dos seus empregadores, impedidos de mudarem de emprego ou de saírem do país.

As imagens impressionantes que nos chegam do Catar, dos oito grandes estádios construídos para receber o Campeonato do Mundo de 2022, que começa em meados de novembro, escondem uma sombria e dura realidade das condições laborais dos trabalhadores migrantes que tornaram possível este programa de construção sem precedentes.

O país empregou milhares de trabalhadores imigrantes para a construção dos oito estádios, novo aeroporto, novas estradas, sistemas de transportes públicos e hotéis. O governo do Catar diz ter contratado 30 mil trabalhadores apenas para a construção dos estádios.

Em 2021, uma investigação de The Guardian concluiu que mais de 6500 trabalhadores da Índia, Paquistão, Nepal, Bangladesh e Sri Lanka morreram no Catar desde que o país se prepara para receber o campeonato do mundo de futebol. Obrigados a trabalhar durante 12 horas consecutivas, sem pausas, muitos destes trabalhadores acabaram por morrer por ataques cardíacos e insuficiência respiratória devido às altas temperaturas. O jornal estima que, nos últimos 12 anos, cerca de 12 trabalhadores migrantes tenham morrido em cada semana.

Durante os últimos meses têm sido publicadas cada vez mais notícias que expõem as condições de vida miseráveis dos trabalhadores migrantes e a escala alarmante de exploração que têm sofrido.

Para além das condições precárias em que vivem, estes trabalhadores – provenientes maioritariamente da Índia, Paquistão, Nepal, Bangladesh e Sri Lanka – vivem na miséria devido aos baixos salários e às taxas ilegais que são obrigados a pagar. Para além disso, os trabalhadores são forçados a trabalhar sob a ameaça de retenção do pagamento, entrega à polícia ou impedimento de abandonar o Qatar.

De acordo com uma reportagem de The Guardian, os trabalhadores vivem em “barracas decadentes”, sem janelas e em condições insalubres.
Obrigados a pagar taxas de recrutamento
Todos os trabalhadores entrevistados pelo jornal britânico dizem ainda que foram forçados a pagar taxas ilegais a agentes dos seus próprios países para garantirem os seus empregos.

Migrantes do Bangladesh e do Nepal perfazem um terço da força de trabalho do Catar e pagam, em média, taxas de mil a mil e quinhentos, ou três mil a quatro mil dólares, conforme os trabalhos. Os trabalhadores acabam por ficar mergulhados em grandes dívidas, já que ganham pouco mais de 275 dólares por mês, pelo que muitos têm de trabalhar mais de um ano só para pagar estas taxas de recrutamento ou são obrigados a recorrer a empréstimos.

“Paguei 300 mil taka [moeda do Bangladesh] em taxas”, disse um trabalhador a The Guardian, uma quantia equivalente a cerca de 3000 euros. “Alguns pagam um pouco mais, outros um pouco menos, mas todos pagam”, afirmou.

“O salário é muito baixo, é muito difícil”, confessou outro trabalhador ao jornal, que diz conseguir enviar apenas 180 euros por mês à mulher e filhos que vivem na Índia.

O comité organizador do Mundial 2022 implementou uma estratégia em 2018 para assegurar que as empresas com contratos com os estádios construídos paguem aos seus trabalhadores as taxas de recrutamento. Estas mesmas empresas dizem ter reembolsado mais de 28 milhões de dólares a 49 mil empregados. No entanto, todos os trabalhadores entrevistados pelo Guardian dizem não ter recebido qualquer reembolso.
O sistema kafala
Muitos trabalhadores candidataram-se a este trabalho porque o viam como uma tábua de salvação, já que no país de origem não encontram trabalho nem rendimentos.

Contudo, para além das condições miseráveis e das dívidas a que ficam sujeitos, estes homens ficam ainda reféns dos seus empregadores, impedidos de mudarem de emprego ou de saírem do país.

Tal deve-se ao chamado sistema kafala, um regime utilizado no Catar para controlar os trabalhadores migrantes. O sistema exige que todos os trabalhadores tenham um patrocinador no país, geralmente o seu empregador, que é responsável pelo seu visto e estatuto legal.

Perante as críticas de várias organizações dos direitos humanos, o Catar anunciou em 2020 uma nova lei que prometia remover o sistema kafala. Contudo, os trabalhadores dizem que continuam a ser pressionados pela empresa a não mudar de trabalho.

“A empresa não nos dá permissão para sair. Só podemos mudar se formos para casa, cancelarmos o visto e fizermos uma nova candidatura”, diz um trabalhador.


“Se pudéssemos mudar de emprego, toda a gente iria embora”, disse outro trabalhador.
Vários trabalhadores deportados
Recentemente, vários trabalhadores foram deportados por terem protestado contra a falta de pagamento de salários.

Seis dezenas de trabalhadores protestaram, em agosto, junto aos escritórios locais do Grupo Internacional Al Bandary, em Doha, um conglomerado que agrega construção, imobiliário, hotéis, serviços alimentares e outros negócios.

Entre os manifestantes, havia quem não recebesse salário há pelo menos sete meses.


Vários dos manifestantes acabaram por ser detidos e outros deportados por terem “violado as leis de segurança”, alegou o governo qatari.

Confrontada com estes relatos, a FIFA tem defendido que várias medidas foram implementadas nos últimos anos para melhorar a proteção dos direitos dos trabalhadores no Catar.

Por sua vez, o governo do Catar também tem argumentando que introduziu recentemente uma série de reformas para melhorar as condições de trabalhado dos migrantes e rejeitou um relatório da Amnistia de 2021 que apontava que milhares de trabalhadores migrantes continuavam a ser explorados no país.

De acordo com a Amnistia Internacional, mais de 17 mil adeptos de futebol de 15 países defendem que a FIFA deve indemnizar os trabalhadores migrantes no Catar por violações dos direitos humanos.
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