Direitos Humanos. Catar deporta migrantes laborais com salários em atraso

por Graça Andrade Ramos - RTP
Estádios como este, o Al Bayt, construído de propósito para o Mundial de Futebol Doha 22, só foram possíveis graças a uma vasta força de mão-de-obra barata importada maioritariamente da Ásia. Reuters

A menos de três meses do Campeonato do Mundo da FIFA 22, o Catar deportou vários imigrantes detidos enquanto se manifestavam há uma semana contra a falta de pagamento de salários, denunciou uma firma local de defesa dos direitos laborais. O caso volta a questionar a forma como está a ser tratada a mão-de-obra barata que tornou possível a realização em novembro do campeonato mundial Doha 22, e a oportunidade da decisão da FIFA em 2010

"Está esta realidade a vir à tona?" perguntou Mustafa Qadri, o diretor executivo do grupo Equidem, à Associated Press, AP.

Para o diretor da organização de consultoria laboral que investiga as detenções e deportações, as garantias dadas pelo Catar sobre o melhoramento das condições de vida dos trabalhadores são quase letra morta.

Vídeos publicados nas redes sociais mostraram seis dezenas de trabalhadores zangados devido ao atraso do pagamento dos seus salários, a protestarem dia 14 de agosto em Doha junto aos escritórios locais do Grupo Internacional Al Bandary, um conglomerado que agrega construção, imobiliário, hotéis, serviços alimentares e outros negócios. O protesto bloqueou um cruzamento na C Ring Road frente à torre Al Shoumoukh.

Em resposta às questões da AP, domingo à noite, o governo Catari reconheceu que "um número de manifestantes foi detido por violar as leis de segurança pública", sem dar quaisquer informações quanto a números de pessoas presas e deportadas.

O Al Bandary, privado, não respondeu a pedidos de esclarecimento e o número de telefone registado em seu nome manteve-se desligado em várias tentativas de contacto.

A Equidem afirma que entre os manifestantes havia quem não recebesse salário há pelo menos sete meses e o Governo do Catar reconheceu a situação, prometendo que o Ministério do Trabalho irá pagar "todos os salários e subsídios em atraso" aos afetados.

"A empresa estava já a ser investigada pelas autoridades pelo não pagamento de salários antes do incidente, e falhou o prazo para regularizar a situação, pelo que outras ações serão adotadas", garantiu o executivo, sem esclarecer quais.
As leis laborais no Catar
A deportação parece confirmar a violação dos direitos laborais de milhares de expatriados, contratados pelo Catar para construirem estádios e infraestruturas a tempo de Doha 22, várias vezes denunciada por organizações não-governamentais.

Mustafa Quadri revelou à AP que haverá centenas de trabalhadores retidos num centro de detenção, incluindo os que foram presos durante a manifestação. Um deles, que contactou a Equidem a partir do centro, revelou estar detido com mais de 300 colegas, oriundos de países tão variados como o Bangladesh, o Egito, a Índia, o Nepal e as Filipinas.

A mesma fonte acrescentou que alguns tinham sido pagos depois do protesto e outros não.

Afirmou também que o centro de detenção não tinha ar condicionado apesar do calor. Quadri disse à AP que a polícia afirmou aos detidos que, se se podiam manifestar sob o calor, também podiam dormir sem ar condicionado. Em Doha as temperaturas atingiram 41 graus Celsius esta semana. A agência noticiosa não conseguiu verificar independentemente estas informações.

O Catar, a exemplo de outros Estados do Golfo, importa mão-de-obra barata de diversos países, sobretudo da Ásia, mantendo-a em condições laborais escravizantes e precárias.

O país já deportou no passado trabalhadores que se manifestaram contra as condições de vida e faz depender os vistos de residência de uma situação de emprego.

O direito à formação de sindicatos é muito restrito e controlado, disponível somente para cataris, assim como o direito a assembleia livre, indica o grupo de advocacia Freedom House, baseado em Washington DC, Estados Unidos.

A atribuição a Doha, em 2010, do Campeonato do Mundo de Futebol 2022, pela FIFA, obrigou a rica nação da Península Arábica a rever a sua legislação laboral incluindo a eliminação do sistema de contratação kafala, que ligava os trabalhadores aos seus empregadores atribuindo aos últimos a última palavra sobre quando os primeiros podiam deixar o emprego ou até abandonar o país.

O Catar determinou igualmente um salário mínimo de 1.000 riyals qataris (cerca de 276 euros) para os trabalhadores, exigindo ainda subsídios de alojamento e de alimentação caso o empregador não os providenciasse.

Ativistas como Qadri exigem mais às autoridades de Doha, sobretudo quanto ao pagamento atempado dos salários e proteção face a empregadores abusivos. "Teremos sido todos enganados nos últimos anos", questionou, sugerindo que as reformas recentes serviram para os responsáveis “disfarçarem” a prevalência contínua de práticas laborais abusivas.

Em fevereiro de 2021, o jornal britânico Guardian afirmou que 6.500 trabalhadores da Índia, do Paquistão, Nepal, Bangladesh e Sri Lanka tinham morrido no Catar desde que o país venceu a candidatura ao campeonato Mundial da FIFA.

As mortes foram reportadas pelos cinco países sem referência a ocupação ou local de trabalho. Diversas ONG referem contudo que a maior probabilidade é que os trabalhadores estivessem envolvidos na edificação das infraestruturas de Doha 22.

O Governo do Catar afirma que os números estão sobrestimados pois incluem milhares de estrangeiros que morreram após vários anos de trabalho no país em tarefas não relacionadas com a construção. Apenas conta 37 mortes entre os trabalhadores que ergueram os estádios do Mundial e que 34 destas “não tiveram relação com a obra”.
O caso do queniano que ousou falar
O Catar é uma das ricas nações do Golfo, cujos rendimentos provêm sobretudo do petróleo, e acolhe a sede da rede de notícias Al Jazeera, contudo a liberdade de expressão permanece limitada no país.

O ano passado, as autoridades detiveram em parte incerta durante semanas e acabaram por deportar um guarda queniano, Malcom Bidali, de 28 anos, que denunciara publicamente as dificuldades da força laboral migrante no país. O processo, denunciado a 31 de maio de 2021, revelou uma cascata de violações dos direitos humanos que questiona igualmente a atribuição do Campeonato Mundial ao Catar pela FIFA.

Bidali trabalhava em turnos de 12 horas como segurança e nos tempos livres escrevia sob o pseudónimo “Noah” sobre a sua experiência como trabalhador mal pago, as suas tentativas de melhorar o seu alojamento e os desafios da vida. A 26 de abril de 2021 falou sobre isso e apareceu brevemente numa videoconferência com a sociedade civil e sindicatos.

Escassas horas depois do fim da videoconferência, um utilizador da rede Twitter enviou a Bidali uma ligação que parecia indicar um vídeo da ONG Human Rights Watch e que ele acionou. Foi direcionado para uma página falsa no You Tube que “poderá ter permitido aos atacantes obter o seu IP, que poderá ter sido usado para o identificar e localizar”, afirmou a Amnistia Internacional. Este tipo de ataque é conhecido como phishing.

Obter estes últimos dados só é contudo possível com acesso a informação privada na posse dos prestadores de serviços e à partida apenas acessíveis a estes e a responsáveis das forças oficiais de segurança de um país. A conta que atacou Bidali foi depois suspensa pelo Twitter sem qualquer explicação.

Os dois maiores fornecedores de internet do Catar, Ooredoo e Vodafone Catar, nunca responderam quando questionados sobre o ataque que visou Bidali e silêncio igual foi mantido pelas autoridades do Catar.

Apesar de reconhecerem que não é possível provar quem foram os autores do ataque de phishing, os ativistas da Amnistia e do Citizen Lab sublinharam que se assemelhou a outros levados a cabo pelos dirigentes do Golfo Arábico contra dissidentes e opositores políticos.

Várias organizações de defesa dos direitos humanos lançaram uma campanha pela libertação de Bidali. “Não há qualquer prova de que ele esteja detido por outra razão que não o seu direito humano laboral legítimo - pelo exercício da sua liberdade de expressão e por trazer à luz a forma como o Catar trata a sua força laboral de migrantes”, referiram.

Se existiam outras razões oficiais para a detenção do queniano estas nunca foram invocadas oficialmente.

(com Associated Press)
pub