Geração Z 212. Marrocos acusado de tortura e repressão contra manifestantes

Há denúncias de tortura com fios elétricos, assédio e detenções arbitrárias, a poucos dias de o país receber o Campeonato Africano das Nações.

RTP /
Amr Abdallah Dalsh - Reuters

Marrocos prepara-se para receber, no próximo domingo, o Campeonato Africano das Nações. Em simultâneo, enfrenta uma vaga de críticas após denúncias de detenções sem base legal válida, tortura, assédio sexual e confissões forçadas contra centenas de jovens da chamada “Geração Z 212”, protagonistas do maior protesto no país desde a Primavera Árabe de 2011.

As denúncias foram feitas por organizações de defesa dos Direitos Humanos, que afirmam que o Governo respondeu com uma repressão severa às manifestações que eclodiram no final de setembro e início de outubro deste ano, motivadas pelo subfinanciamento dos setores da saúde e da educação.

De acordo com o jornal britânico The Guardian, testemunhos apontam para práticas de tortura, como espancamentos com fios elétricos e humilhações físicas, cujas marcas ainda eram visíveis semanas depois.

Segundo Souad Brahma, presidente da Associação Marroquina de Direitos Humanos (AMDH), algumas manifestantes foram vítimas de "atos de assédio, insultos, comentários grosseiros e sexistas" e ainda "toques inapropriados". A Amnistia Internacional e a Human Rights Watch também reforçaram a detenção arbitrária de milhares de pessoas, muitas delas sujeitas a violência extrema sob custódia policial.

Relatos recolhidos pelo Guardian descrevem espancamentos, privação de comida e água durante horas e pressões para obter confissões.

"O meu filho estava a jantar num bar quando foi detido. Nem sequer estava a protestar", disse uma mãe cujo filho de 18 anos está detido há mais de dois meses.

“Chegou a perder alguns dentes simplesmente porque se recusou a assinar os documentos policiais referentes às suas audiências", referiu.

Até ao momento, mais de 2.400 pessoas estão a ser processadas devido a ligação com os protestos, e centenas continuam detidas, incluindo menores. Dezenas já receberam penas de prisão, algumas até 15 anos.

Advogados e ativistas denunciam ainda a ausência de defesa legal durante julgamentos, investigações insuficientes e condenações baseadas em provas consideradas insuficientes.
“Só queremos justiça”

A repressão atingiu um ponto crítico no dia 1 de outubro, quando três manifestantes foram mortos a tiro durante um protesto em Lqliâa, perto de Agadir. Outras 14 pessoas ficaram feridas com tiros, incluindo crianças de 12 anos.As autoridades alegaram que os disparos ocorreram após manifestantes terem invadido uma esquadra de polícia.


“O Governo ficou claramente assustado e orquestrou esta repressão para enviar uma mensagem forte de que não tolerará qualquer forma de dissidência”, afirmou Ahmed Benchemsi, da Human Rights Watch.

Apesar disso, o Governo marroquino anunciou posteriormente um compromisso com reformas sociais e um aumento do investimento na saúde e na educação.Nas últimas semanas, novos protestos surgiram em várias cidades, com manifestantes a exigirem a libertação dos jovens detidos.


A contestação intensificou-se ainda após as cheias repentinas que causaram a morte de 37 pessoas na província de Safi, com críticas à prioridade dada pelo governo a projetos de prestígio internacional em detrimento de infraestruturas e serviços essenciais.

O clima de intimidação subsiste. Familiares de vítimas mortas em Lqliâa relataram ter sido levados pela polícia após uma vigília pacífica em frente ao parlamento, em Rabat, onde exibiam fotografias dos falecidos. Segundo o relato dos familiares, os agentes confiscaram os seus telemóveis e apagaram “tudo o que estava relacionado com a manifestação. As autoridades negam que tenham ocorrido detenções.

“Só queremos justiça, uma investigação transparente e que os responsáveis sejam punidos”, disse Abdessamade Oubalat, familiar de uma das vítimas, de acordo com o jornal The Guardian.

Para muitos jovens, o medo substituiu a mobilização. “Ouvimos depoimentos horríveis de tortura sob custódia policial”, afirmou Mustapha Elfaz, da AMDH em Marraquexe acrescentando que muitas vítimas se recusam a falar publicamente por receio de sofrerem represálias.

“O que acontece dentro das prisões agora permanece em grande parte oculto”, afirmou.

O Campeonato Africano das Nações começa este domingo e prolongar-se-á até dia 18 de janeiro de 2026, em Marrocos. Segundo o secretário-geral da Confederação Africana de Futebol (CAF), Verón Bosseman Ambo, já foram vendidos mais de um milhão de bilhetes para o evento.

Enquanto Marrocos se apresenta ao continente africano como anfitrião de um grande evento desportivo, cresce o escrutínio sobre o custo humano da repressão interna.
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