Incêndios. As principais recomendações da Comissão Técnica Independente

por Andreia Martins - RTP
O relatório da Comissão Técnica Independente sobre os acontecimentos de junho, em Pedrógão Grande, chegou a público a 12 de outubro, escassos dias antes da vaga de incêndios de domingo e segunda-feira Pedro Nunes - Reuters

Uma semana depois de uma vaga de incêndios que ceifou a vida a mais de quatro dezenas de pessoas - e quatro meses depois da calamidade de Pedrógão Grande -, o Governo é pressionado a adotar mudanças na metodologia de combate aos fogos na reunião extraordinária do Conselho de Ministros, que se realiza este sábado. As recomendações da Comissão Técnica independente, que constam do relatório sobre os incêndios de junho, lançam as bases para uma nova estratégia.

O relatório da Comissão Técnica Independente sobre os acontecimentos de junho, em Pedrógão Grande, chegou a público a 12 de outubro, escassos dias antes da vaga de incêndios de domingo e segunda-feira, um pouco por todo o país. 

Em conjunto, estas duas situações mais graves de incêndios com mortos, ocorridas em apenas quatro meses, levaram às mortes de mais de uma centena de pessoas, centenas de feridos e perdas socioeconómicas incalculáveis para regiões do país já de si fragilizadas. 

Mais de cem vítimas mortais, centenas de feridos e pelo menos 500 mil hectares de área ardida depois, o Governo passa das palavras à ação. A repetição do cenário de tragédia levou à contestação política contra o Executivo, com especial enfoque na ministra da Administração Interna, que acabaria por se demitir a meio da semana. Pelo meio, um discurso amargo do Presidente da República, um debate quinzenal aceso e uma moção de censura apresentada pelo CDS-PP, que será votada na próxima semana, reclamam uma resposta convincente por parte do Governo. 

Logo no início da semana, foi anunciada a marcação de uma reunião extraordinária do Conselho de Ministros, a realizar este sábado, que terá como assunto único a discussão do combate e prevenção de incêndios. Será a primeira reunião com Eduardo Cabrita como ministro da Administração Interna e Pedro Siza Vieira como ministro adjunto do primeiro-ministro. 

Na véspera deste encontro, o Governo foi dando sinais das mudanças que se avizinham. Em Bruxelas, o primeiro-ministro defendeu o projeto de uma força europeia de proteção civil, a ser estudada pela Comissão Europeia. Por cá, o cadastro da floresta, lei aprovada em julho na sequência do incêndio de Pedrógão Grande, deverá entrar em vigor no próximo dia 1 de novembro, segundo o Diário de Notícias.  

Também na sexta-feira, o Público avançava que o primeiro-ministro deveria restabelecer a Secretaria de Estado da Proteção Civil, que existiu em executivos recentes. A decisão,  entretanto confirmada pelo Governo, partiu tambem de uma recomendação que consta no relatório da Comissão Técnica Independente (CTI), que sugere a criação de uma estrutura política responsável pelo sector com ligação direta ao chefe de Governo.  

Este documento de 282 páginas analisa em específico circunstâncias e acontecimentos de Pedrógão Grande, mas os problemas e as recomendações refletem-se de igual forma nas deficiências na prevenção e combate de grandes incêndios, que esta semana se repetiram de forma trágica. 

As recomendações que servem de base à análise e adoção de medidas pelo Governo subdividem-se em seis áreas específicas: o sistema de combate, o conhecimento disponível, recursos humanos, ordenamento e gestão, gestão de operações de combate e populações. 

O relatório propõe ainda a criação de uma Agência para a Gestão Integrada de Fogos (AGIF), órgão transversal a várias áreas de intervenção que atue ao nível regional e distrital. 

De forma mais abrangente, sugere uma gestão mais cuidada, racionalizada dos recursos para o combate e a prevenção, aliando o conhecimento técnico e a ação no terreno. 

Das sugestões mais teóricas e conceptuais, desde a mudança da designação “Defesa da Floresta Contra Incêndios” para “Defesa Contra Incêndios Rurais” ou às propostas específicas para a gestão das redes de comunicação, olhamos para as principais medidas propostas por esta Comissão.  
Agência para a Gestão Integrada dos Fogos Rurais
A criação desta agência de caráter transversal e especializado constitui uma das principais sugestões do relatório, que engloba os objetivos centrais de "proteção de pessoas e bens" e de "gestão dos incêndios rurais". Na prática, seria constituída por unidades com poder de atuação até ao nível regional e distrital, com equipas de especialistas operacionais de apoio à intervenção. 

“A alocação do número de técnicos às equipas distritais deverá ser feita em função do risco de incêndio florestal do distrito. As equipas distritais terão mobilidade para todo o território nacional (continente e ilhas), deslocando-se sempre que necessário para ações de prevenção, pré-supressão ou supressão para outros distritos, substituindo ou reforçando localmente o dispositivo”, refere o documento.

Esta agência ficaria a depender diretamente da presidência do Conselho de Ministros. De forma a assegurar “maior garantia de independência e estabilidade”, deveria ter igualmente “um conselho técnico consultivo e de avaliação”, composto por peritos. 

Os elementos deste órgão seriam “especialistas com formação de base ao nível das licenciaturas”, relacionadas com temas como a organização, gestão e proteção do território. 
Melhorar o sistema de comunicações
No capítulo sobre a gestão de operações de combate encontramos algumas das principais recomendações deixadas pela CTI, incluindo as que dizem respeito à comunicação. Desde a tragédia de Pedrógão Grande que a rede SIRESP tem sido apontada como uma das principais falhas nos dias 17 e 18 de junho. 

O relatório reconhece que o sistema de comunicações vigente há vários anos “representou uma enorme evolução em relação aos diversos sistemas então existentes”. No entanto, a evolução tecnológica “vertiginosa” neste domínio pede que sejam feitas alterações e ajustes ao sistema de comunicações.

A comissão propõe no relatório o aumento do número de antenas móveis e a distribuição criteriosa pelo território, em função das áreas de maior risco, ou garantir que a rede de fibra ótica utilize, sempre que possível, as condutas subterrâneas existentes ao longo de itinerários rodoviários.

O relatório propõe “um programa intensivo de formação”, para que os utilizadores possam aproveitar as potencialidades dos terminais SIRESP, mas também que sejam revistas “as condições do concurso no que respeita à instalação da fibra ótica, bem como a estrutura empresarial do SIRESP, a qual integra na atualidade empresas insolventes, em processo de revitalização ou de credibilidade duvidosa, para além da impossibilidade de escolha no mercado dos equipamentos” em melhores condições.  

É ainda proposto que os sistemas de comunicação de emergência evoluam para tecnologia avançada, com capacidades de 3G e 4G. 
Postos de comando
Este ponto surge mencionado noutros relatórios sobre Pedrógão Grande, nomeadamente o documento do Centro de Estudos da Proteção Civil, que argumenta que a ausência de um ponto forte de comando prejudicou a organização e a eficácia do combate e resposta rápida ao incêndio de junho. Por isso, destaca-se a “valorização e proteção” do posto de comando. 

“É frequente a participação de pessoas que, apesar de representarem entidades oficiais ou órgãos da comunicação social, não trazem qualquer contributo para a racional e efetiva gestão das operações e tomada de decisões, perturbando frequentemente o adequado funcionamento do posto de comando”, pode ler-se no documento.

A CTI propõe que a organização dos postos de comando seja composta “por quem efetivamente pode contribuir para a resolução do problema” e a diferenciação deste com “outros postos de coordenação, nomeadamente de comunicação social, de apoio social ou de logística em geral”.
Forças Armadas

O relatório considera que as Forças Armadas, sendo agentes de Proteção Civil, “não estão devidamente enquadradas nos dispositivos”, referindo mesmo que estão “subaproveitadas nas operações de defesa da floresta e de combate aos incêndios rurais”. Neste ponto, poderá retirar-se benefícios do Regimento de Apoio Militar de Emergência (RAME), criado em 2014, à imagem do que acontece em Espanha. 

“O Regimento de Apoio Militar de Emergência (RAME), criado no âmbito da reforma Defesa 2020, materializou-se, porém, numa versão minimalista da intenção inicial, pois acabou por não se constituir como uma unidade militar com capacidades, meios e processos dos diferentes ramos das Forças Armadas. O atual RAME, na situação atual, não tem condições nem capacidade para ser verdadeiramente útil em operações de emergência”, conclui o documento. 

Na proposta da Comissão Técnica Independente, as Forças Armadas podem ser úteis sobretudo no apoio logístico às operações de combate e no rescaldo, no apoio logístico às populações e em situação de evacuações, ou em tarefas tão específicas como “confeção e distribuição de refeições, montagem de locais de descanso e de banhos, no fornecimento de energia, no fornecimento de iluminação de emergência, na captação e potabilização de água”, entre outros. 

“Deverá eventualmente definir-se as modalidades para ampliar a intervenção e mobilização de meios dos diferentes ramos das Forças Armadas, designadamente em operações de prevenção estrutural e coordenados pela Autoridade Florestal Nacional”, lê-se ainda no documento.
“Ataque inicial” e conhecimento técnico
É numa fase inicial que os incêndios são mais facilmente controlados. Por isso, o relatório propõe ao Governo o “pré-posicionamento para a melhor distribuição e cobertura dos locais de maior risco e rápida chegada aos locais de ocorrências, aproveitando-se assim oportunidades de sucesso na primeira intervenção”.  

“Esta colocação de meios no território permitiria o desempenho de outras funções complementares, de vigilância, deteção, fiscalização e dissuasão, podendo contribuir também para diminuir de forma importante o número de ocorrências e sobretudo as ocorrências negligentes”, pode ler-se no documento.

O relatório refere que o ataque inicial é melhorado por diversas vias, desde a maior profissionalização dos intervenientes ao reforço da distribuição e colocação no território de forma estratégica.  

O conhecimento das condições técnicas, nomeadamente das condições meteorológicas, visibilidade, acessibilidade, probabilidade de ocorrências e dos meios existentes, também pode ser muito valioso no combate aos incêndios. O relatório diz mesmo que o conhecimento deste tipo de condições técnicas se deve traduzir na “chave mestra” da organização de combate aos fogos.  

“O aproveitamento das melhores condições para o combate, a fluidez da informação técnica do Instituto Português do Mar e da Atmosfera, a capacidade de interpretar a complexidade das situações, a integração de especialistas de análise do fogo, assim como a intervenção de operacionais especializados, convergem num fluxo onde o conhecimento deverá ser o fator privilegiado de conjugação”, lê-se no relatório.  Formação e concursos na Proteção Civil
A educação para o combate aos fogos ocupa várias páginas deste relatório. A comissão técnica independente sugere que é necessário superar uma “determinante deficiência” na falta de formação nos corpos de bombeiros voluntário. Na visão dos técnicos, esta constitui uma das principais limitações que se impõem ao sistema de proteção civil.

O relatório enfatiza também que os bombeiros voluntários recebem grande parte das suas competências no âmbito de formações pontuais, cursos de curta ou muito curta duração. A Comissão Técnica propõe que este modelo possa ser repensado e “eventualmente reformulada”.

Até porque essas formações servem habitualmente apenas para efeitos de acesso à carreira ou promoções, proporcionadas pela Escola Nacional de Bombeiros (ENB). A proposta do Executivo é de transformar a ENB numa escola profissional, completamente integrada no sistema educativo nacional. Seria assim uma escola profissional, como outras, com uma orientação para perfis profissionais, com base no que acontece no sistema politécnico.

Quanto às nomeações para cargos na estrutura da Proteção Civil, o relatório entregue ao Governo diz que os responsáveis “devem ser constituídos por profissionais que devem possuir as competências e experiência adequada para o desempenho de funções”.  

Uma das principais propostas traduz-se na substituição das nomeações por concursos para o acesso às estruturas da Proteção Civil. O relatório propõe a “substituição progressiva, mas com implementação imediata, do atual sistema de nomeações, por sistema de concursos, com base na formação, nas competências, na experiência e no mérito, de acordo com os perfis definidos para as funções e submetendo-se às regras de seleção de dirigentes superiores previstas na administração pública”.  
Sensibilização da sociedade e autarquias
O relatório propõe ao Governo que envolva a sociedade no problema dos incêndios e chama à atenção para a questão das ignições, já que Portugal tem números elevadíssimos de ignições quando comparado com os restantes países.  

Se cerca de 98 por cento das ignições é provocada por mão humana, a maior parte está associada a negligências e acidentes, e não atos criminosos. Os técnicos dizem mesmo que esta é talvez a expressão “mais evidente” da desresponsabilização da sociedade quanto ao problema dos incêndios.  

“Trata-se sobretudo de um problema de educação, sensibilização, consciencialização e responsabilização”, refere-se no documento.

Por isso, a CTI propõe a revisão da estratégia nacional de revisão de ignições, com inclusão de ações no terreno que envolvam bombeiros, sapadores florestais e GNR. A prevenção poderá passar também, sugere o relatório, com o envolvimento da comunicação social neste trabalho, dentro de um quadro legal específico, com vista a “desfazer o mito do fogo posto”, levando à emissão de avisos à população em dias de elevado risco de incêndio através da comunicação social, mas também das empresas de telecomunicações, com o envio de mensagens de texto.

Da mesma forma, também as medidas de autoproteção em caso de incêndio devem ser difundidas, sobretudo nas áreas de maior risco de incêndio. Neste âmbito, é relevante sobretudo o papel das autarquias locais na sensibilização para os comportamentos corretos em caso de fogo.  

Uma vez que as dificuldades de comunicação têm sido um dos principais problemas durante e após os incêndios, o relatório propõe também a criação de “sistemas rápidos de alerta, capazes de abranger segmentos significativos da população presente e destinados a transmitir em tempo útil informações e indicações úteis”. 
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