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Irão avisa. Trump vai-se embora mas "nós ficaremos cá"
Teerão deixou esta semana uma proposta ao seus países vizinhos, um verdadeiro aviso quanto à falta de sensatez de apostar em "estranhos" para "garantir a segurança". Uma mensagem deixada pelo ministro dos Negócios Estrangeiros iraniano, Javad Zarif, e reforçada pelo seu Ministério.
Zarif publicou a sua mensagem "sincera" na rede Twitter, em inglês e em árabe.
A sincere message to our neighbors:
— Javad Zarif (@JZarif) November 8, 2020
Trump's gone in 70 days
But we'll remain here forever
Betting on outsiders to provide security is never a good gamble
We extend our hand to our neighbors for dialog to resolve differences
Only together can we build a better future for all.
"Trump vai-se embora dentro de 70 dias. Mas nós ficaremos cá para
sempre. Apostar em estranhos para garantir a segurança nunca é uma boa
aposta. Estendemos a nossa mão aos nossos vizinhos e para resolver as
nossas divergências. Só unidos poderemos construir um futuro melhor para
todos".
Os destinatários são os países árabes do Golfo e outras nações árabes, particularmente os Emirados, o Bahrein e o Sudão, que estabeleceram relações com Israel este verão, sob o beneplácito da Administração Trump.O jornal israelita Jerusalem Post considera esta uma proposta "ao melhor estilo de um patrão da Máfia" uma verdadeira "ofensiva de pau e cenoura" junto dos países vizinhos. "O Irão oferece-lhes uma alternativa - mudem e juntem-se a nós, ou sofram no futuro as consequências - os Estados Unidos não irão proteger-vos", interpreta o artigo.
A proposta sucinta de Zarif foi ecoada de forma mais extensa pelo seu porta-voz, Saeed Khatibzadeh, citado pela agência de notícias estatal iraniana, Fars News.
"A Administração Trump seguiu uma direção muito errada nos últimos anos e a maior pressão resultou no maior fracasso", afirmou. "Só a linguagem da paz e do respeito responde à dignidade e ao povo civilizado do Irão", acrescentou Khatibzadeh, deixando depois mais uma série de recados.
"Ainda há tempo para recuar nas políticas falhadas e no legado inumano dos Estados Unidos e dos charlatães falidos que aconselham a atual Administração norte-americana. Estamos muito atentos às ações e percursos da futura Administração dos Estados Unidos".
Unidos, mas contra Teerão
O candidato democrata à Casa Branca, Joe Biden, assumiu a vitória sábado passado, depois da contagem dos votos na recente eleição presidencial lhe ter assegurado a maioria dos delegados ao Colégio Eleitoral. Donald Trump não concedeu contudo a eleição, por considerar que o Partido Democrata executou uma fraude em larga escala. A questão será resolvida nos tribunais.
Porém, não se espera que, caso venha a ocupar a Casa Branca e apesar das suas inúmeras críticas ao longo dos anos, Biden venha a fazer grandes alterações à política seguida por Trump no Médio Oriente, pelo menos não nos primeiros meses e seguramente não de forma a colocar em perigo os acordos alcançados este verão entre Israel e alguns países da região.A maioria dos analistas concorda que por trás desta aproximação entre Israel e países vizinhos estão interesses económicos mas, sobretudo, a garantia de formação de uma frente militar contra o Irão, alimentada por armas norte-americanas. Aos olhos das monarquias do Golfo, as políticas anti-iranianas de Trump estiveram em alinhamento perfeito com os seus próprios interesses.
Apesar da sua retórica anti-americana, o Irão poderá vir a ter em Joe Biden um dos maiores aliados a médio prazo, caso o democrata decida por fim às sanções impostas por Donald Trump e regressar ao Acordo sobre o Programa Nuclear Iraniano, assinado pelo democrata Barack Obama em 2015 e denunciado por Trump em 2018.
Teerão não esperou para ver para que lado irá pender a balança eleitoral. O seu recurso é lembrar aos vizinhos que, de acordo com as regras democráticas, o poder em Washington pode mudar em qualquer momento.
"Só podemos contar connosco mesmos e as únicas soluções são indígenas... Sigam o caminho lógico da tomada de decisão e a coisa mais perigosa é olhar a partir de fora para a política externa", frisou Saeed Khatibzadeh.
"O Irão tem uma política constante, que é a política da boa vizinhança", lembrou, para logo depois ecoar o aviso de Zarif. Aqueles que pediram aos EUA proteção e segurança "não podem sempre pagar e influenciar e matar o povo iemenita", disse Khatibzadeh, numa referência ao conflito que envolve a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos no Iémen, desde 2015, em defesa do poder sunita iemenita contra a tomada de poder por parte da fação muçulmana xiita dos Houthi.
"Esta é uma mensagem clara do Irão que lhes deixamos há sete anos neste Governo e nos anos anteriores e que se mantém", disse Khatibzadeh. "Esperamos que cheguem à conclusão lógica de que necessitamos de um mecanismo local na região. O Irão está sempre pronto".
Nada impressionados
Não se espera que, em resposta, Riade, o outro grande poder do mundo islâmico rival de Teerão, venha a abrir os braços aos iranianos e ao mecanismo que estes propõem.
O Irão tem atacado interesses petrolíferos sauditas no Golfo, com drones e mísseis cruzeiro. Desviou navios petroleiros em rota no Golfo de Omã, atacou tropas americanas no Iraque através de grupos simpatizantes, lançou morteiros contra a capital do Curdistão iraquiano, Erbil, ameaçou tribos aliadas com os norte-americanos e usou as milícias xiitas libanesas do Hezbollah para ameaçar israel nos Montes Golã.
Teerão aliou-se ainda a Moscovo e a Ancara para impedir que Riade e as monarquias do Golfo usassem os grupos armados islamitas para chegar ao poder na Síria, após a Primavera Árabe. A China está igualmente a ser vista pelo regime dos Ayatolas como uma potencial aliada contra a hegemonia dos interesses ocidentais e sauditas no Médio Oriente. E, na semana passada, dias após as eleições nos EUA, Javad Zarif visitou Cuba e a Venezuela, países com quem Teerão mantém boas relações.
O Irão já recebeu em parte uma resposta aos seus avisos, via Bahrein. O reino sunita foi um dos signatários dos novos acordos que abriram caminho ao estabelecimento de relações com Israel. Considera Biden uma incógnita, mas não tem dúvidas que botões vai pressionar em Washington, com quem goza de boas relações há mais de 120 anos, apesar dos sucessivos Presidentes.
"Esperamos continuar a tentar resolver os conflitos, o mais importante dos quais é a questão israelo-palestiniana, através da iniciativa dois Estados que é apoiada pelo mundo inteiro e os Estados do Golfo, incluindo o Estado de Israel", comentou, em entrevista à Media Line, Mohammed al-Sisi, presidente da Comissão para os Assuntos Externos, Defesa e Segurança nacional da Câmara Baixa da assembleia legislativa do Bahrein.
"Esperamos também que o próximo Presidente ponha termo à interferência iraniana em várias capitais árabes e necessitamos garantir a segurança do Golfo e continuar a impor sanções aos Irão até que este regresse à legitimidade internacional, e desista das armas nucleares e de destruição em massa", acrescentou Sisi, frisando as contínuas boas relações bilaterais e institucionais entre ambos os países.
Expandir os acordos
Também à Media Line, o analista político Saad Rashid, colunista no jornal Al-Watan do Bahrein, afirmou que a eventual presença de Biden na Casa Branca não assusta os países do Golfo e outros da região, nem irá causar problemas no Médio Oriente, depois das grandes mudanças sofridas recentemente, "já que estamos a falar de acordos e de tratados com grandes países".
"Agora temos um acordo de paz com Israel. Do meu ponto de vista, a nova Administração liderada por Joe Biden irá apoiar este acordo com Israel e irá expandi-lo", afirmou Rashid, lembrando as intenções enunciadas pelo democrata no discurso em que reivindicou a vitória.
"Ele procura a estabilidade regional através da cooperação com os países da região, pondo de lado as diferenças e de forma a todas as questões serem trazidas à mesa negocial. Biden sabe que o desejo dos países membros do Conselho do Golfo para a Cooperação é deter a maré iraniana nos países da região e por isso está bem ciente de que o desejo quanto a relações de boa cooperação com os países do Golfo será por esta via", explicou.O Conselho do Golfo inclui o Bahrain, o Kuwait, o sultanato de Omã, o Qatar, a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos.
Para Rashid, a grande diferença entre as políticas de Biden e de Trump será a faceta militar. O analista defendeu que um novo poder em Washington irá reforçar a presença das tropas norte-americanas na região, quando Trump as retirou.
E também expressou a esperança de que será possível um entendimento quanto ao programa nuclear iraniano. "Joe Biden irá estabelecer um novo acordo com o Irão, e os Estados do Golfo irão desempenhar um papel neste novo acordo com Teerão", referiu. "Acredito que esse acordo irá incluir a presença de reatores nucleares para uso pacífico no Irão em cooperação com Israel, para garantir que o Irão assine um novo acordo nuclear, e que os reatores nucleares ficarão sob supervisão de agências internacionais, o que será bom para os países do Golfo".
Biden já disse que irá regressar aos Acordos de 2015 se o Irão garantir que cumpre as condições nele impostas. Poderá também agitar a cenoura do regresso ao mercado do petróleo para pressionar Teerão, cujas exportações foram severamente reduzidas com as sanções norte-americanas.
Antes disso, terá de entrar em acordo com os países da OPEC+, a Organização dos Países exportadores de Petróleo e os seus aliados, de forma a evitar inundar o mercado. Uma eventualidade que atira quaisquer eventuais mudanças de política para nunca antes da segunda metade de 2021.
"Não penso que as negociações com o Irão vão ocupar o Presidente no seu primeiro ano", afirmou o multimilionário sueco Torbjorn Tornqvist, diretor-executivo do conglomerado Gunvor. "Tem outras prioridades muito maiores a nível interno", referiu, ecoando outros especialistas e analistas de comércio mundial.