Iraque à beira de novo conflito após vitória do "sim" no Curdistão

A tensão aumenta a cada minuto entre o Curdistão iraquiano e a autoridade central de Bagdade, após o anúncio da vitória anunciada e inequívoca do "sim" no referendo independentista realizado segunda-feira, 25 de setembro.

Graça Andrade Ramos - RTP /
Uma criança empunha uma bandeira curda numa manifestação de apoio ao referendo independentista de 25 de setembro de 2017 Ahmed Jadallah - Reuters

Esta quinta-feira, centenas de pessoas procuravam sair da capital regional, Erbil, depois do anúncio do encerramento do espaço aéreo do Curdistão por parte de Bagdade, a partir de sexta-feira. Várias companhias aéreas do Líbano, do Egipto, da Turquia e do Qatar Airways já anunciaram o cancelamento de todas viagens para o Curdistão, pelo menos durante o fim de semana de 29 de setembro a 1 de outubro.

Muitos estrangeiros que trabalham no Curdistão iraquiano, em empresas e ONG, agências diplomáticas ou de auxílio humanitário, estão a tentar sair da zona para não ficarem encurralados, já que estão na região com vistos emitidos pelas autoridades curdas e não reconhecidos por Bagdade.

O encerramento das fronteiras, com a consequente suspensão da passagem terrestre de bens comerciais, assim como o controlo do espaço aéreo, são as primeiras armas a que Bagdade pretende recorrer para isolar e pressionar as autoridades da região, até agora autónoma, do Curdistão iraquiano.

Os deputados iraquianos pediram ainda ao Governo de Bagdade para garantir o controlo dos poços de petróleo do Curdistão, uma das maiores fontes de riqueza do país.
'Sim' venceu com 92,73%
Horas antes do anúncio oficial dos resultados do referendo, o primeiro-ministro iraquiano, Haider al-Abadi, deu o mote para o que se poderá seguir, exigindo a anulação dos resultados antes de encetar qualquer diálogo "no quadro da Constituição".

"Nunca discutiremos o resultado" do escrutínio, preveniu Haider al-Abadi diante dos deputados na Assembleia Parlamentar do Iraque. "Iremos impor a lei iraquiana em toda a região do Curdistão", prometeu logo depois e abrindo a porta a uma possível intervenção musculada, que poderá incluir a cooperação entre os exércitos da Turquia, do Irão e do Iraque.

Os resultados oficiais do referendo foram divulgados quarta-feira ao fim da tarde. "Em 3.305.925 eleitores, o 'sim' obteve 92,73 por cento" anunciou a comissão eleitoral do Curdistão, lembrando ainda que a participação foi de 72,16 por cento.

Não houve ainda nenhuma declaração de independência por parte das autoridades curdas iraquianas, que se limitaram a negar a anulação do referendo, propondo em vez disso a colocação de observadores iraquianos nos aeroportos curdos.
Interdição de voos
Quinta-feira de manhã, Bagdade ainda não tinha reagido aos resultados. Já tinha contudo intimado as autoridades curdas a remeter para as autoridades centrais, até sexta-feira dia 29, os aeroportos internacionais de Erbil e de Sulaymaniyah.

Passageiros na zona de check-in do aeroporto de Erbil, Curdistão iraquiano, dia 27 de setembro de 2017 Foto: Reuters

Findo esse prazo, anunciou a Autoridade Aérea Civil Iraquiana supervisora do espaço aéreo, ficam suspensos todos os voos internacionais de e para o aeroporto de Erbil, capital do Curdistão, "a partir das 18h00 de sexta-feira" (15h00 GMT).

A diretora do aeroporto de Erbil, Talar Faiq Saleh, contesta a decisão.

"Perguntei ao ministro iraquiano dos Transportes o que queria dizer 'remeter o aeroporto' e ele respondeu-me que significava que todo o pessoal de segurança, de imigração, das alfândegas, devem ser substituídos por pessoal de Bagdade," explicou. "E eu pergunto-me, é razoável, ou até aplicável?"

"Temos aqui consulados, companhias e pessoal internacional, vai afetar todas as pessoas. Não é uma boa decisão" referiu ainda Saleh. "Não afeta apenas os curdos. Temos um grande número de refugiados que utilizam o aeroporto e somos um ponto entre a Síria e a ONU para enviar auxílio humanitário".

"Temos também aqui as forças da coligação (internacional antijiadistas), o que significa que o aeroporto serve para tudo" , acrescentou.
Ancara apoia Bagdade
Apesar do recente prestígio internacional conseguido pela sua participação militar e crucial na luta contra o auto-proclamado Estado islâmico, tanto no Iraque como na Síria, os curdos podem ficar isolados na cena internacional.

Até porque um Curdistão independente poderia vir a reclamar território não só ao Iraque, mas também ao Irão e à Turquia, países que dividiram entre si o território tradicionalmente curdo.

A Turquia, que luta há três décadas contra a insurreição da sua minoria curda, já disse a Bagdade que irá negociar as exportações de petróleo apenas como o Governo iraquiano, anunciou o gabinete de al-Abadi esta quinta-feira.

O próprio primeiro ministro turco, Binali "Yildirim confirmou o apoio do seu país a todas as decisões tomadas ou pretendidas pelo Governo iraquiano depois do referendo da independência", referiu em comunicado.

Entre as medidas mencionadas, o comunicado refere "restringir as operações exportadoras de petróleo ao Governo iraquiano", sem fazer qualquer referência ao modo como Ancara irá lidar com as atuais exportações partir do Curdistão iraquiano.

A Turquia dirigiu-se também diretamente às autoridades de Erbil, ameaçando impor sanções tais que os curdos do Iraque "não encontrarão nada para comer nem com que se vestir". Ameaça ainda "fechar as condutas" do oleoduto que permite às autoridades curdas exportar o seu petróleo através do porto turco de Cayhan.
Putin e Erdogan reunidos
A questão curda vai ser um dos pontos na agenda de uma reunião entre o Presidente Putin e o Presidente Erdogan, durante a visita de um dia do líder russo a Ancara esta quinta-feira.

Moscovo, que detém importantes interesses comerciais no Curdistão iraquiano, tem-se mostrado mais reservada na sua oposição às pretensões de hegemonia curda, que afirma considerar "com respeito". Quarta-feira advertiu tanto Bagdade como Erbil para se absterem de incendiar o Médio Oriente.

O referendo está a inquietar a comunidade internacional, pelo aumento da probabilidade de novo conflito numa altura em que a guerra contra o auto-proclamado Estado Islâmico está na recta final.

Como parte das medidas retaliatórias, o Iraque enviou mesmo ao Irão uma delegação militar aparentemente para coordenar uma possível intervenção armada conjunta contra as pretensões curdas.

O Irão e a Turquia encetaram por seu lado exercícios militares conjuntos perto das suas fronteiras com o Curdistão iraquiano nos últimos dias. Também o Iraque tem realizado exercícios militares com o exército turco.

Até agora a Turquia mantém abertas as suas fronteiras com o Curdistão, apesar de ter aumentado os controlos aduaneiros.
PUB