Joe Biden pressionado a adotar rota de colisão com a Arábia Saudita

por Graça Andrade Ramos - RTP
Joe Biden em outubro de 2011, durante uma visita à Arábia Saudita como vice-presidente dos EUA Reuters

Ainda não assumiu o cargo mas Joe Biden, presidente-designado dos Estados Unidos da América, já está a sofrer pressões para cumprir promessas de campanha quanto às violações de direitos humanos na Arábia Saudita.

Hatice Cengiz, noiva de Jamal Khashoggi, o jornalista saudita do Washington Post assassinado na Turquia em 2018, voltou a exigir esta sexta-feira a publicação de um dossier elaborado pela CIA sobre o ocorrido e que se antevê muito comprometedor para Mohammed bin Salman, o atual príncipe herdeiro da coroa saudita, conhecido pela sigla MBS.

Uma tal ação poderá ter consequências imprevisíveis para as relações entre as duas potências. A Arábia Saudita tem sido uma aliada tradicional dos norte-americanos no Médio Oriente e é cliente assídua do armamento produzido em terras do Tio Sam. Muitos analistas acreditam que só isso impede que o reino sunita seja punido internacionalmente pelo seu desrespeito pelos direitos humanos.

O anunciado 46º Presidente dos EUA apresentou-se nos últimos meses como um crítico assumido de MBS. Durante um debate entre democratas pela nomeação do Partido às presidenciais, Biden prometeu mesmo que iria tornar a Arábia Saudita "a pária que realmente é", se fosse eleito. Prometeu igualmente deixar de vender armas a Riade.

Agora, começa a ser pressionado a dar sinais de que irá cumprir as promessas, especificamente quanto a Kashoggi. Para Cengiz, a divulgação do relatório iria provar que Biden está realmente interessado em fazer a Arábia Saudita "pagar o preço pelo assassínio", como prometeu durante a campanha presidencial de 2020.

Alguns orgãos de comunicação social norte-americanos, sem outros detalhes, divulgaram alegadas conclusões da investigação da Agência Central de Informações. A CIA, afirmam, terá "um grau de confiança entre o médio e o elevado" de que a ordem da execução de Kashoggi veio de Mohammed bin Salman.

Cengiz e outros ativistas acreditam por isso que a revelação do relatório da agência, ainda classificado, irá "ajudar muito" a lançar luz sobre a verdade do que aconteceu, ao mesmo tempo que esperam que Biden aja de forma diferente do seu antecessor.

O apoio recebido da Casa Branca em particular durante a Presidência de Donald Trump, referem, terá ajudado MBS a, literalmente, escapar impune pelo menos ao assassínio do jornalista. 

"Estou a pedir ao Presidente-eleito para publicar as conclusões e documentação da CIA", sobre o caso, afirmou a noiva de Kashoggi e também ativista e escritora turca. "Irá ajudar muito a revelar a verdade sobre quem foi responsável pela morte de Jamal".

Kashoggi foi visto com vida pela última vez a entrar para o consulado saudita em Istambul, em outubro de 2018, alegadamente para ir levantar papéis necessários para se casar com Cengiz. Desapareceu e os seus restos mortais nunca foram recuperados ou sequer localizados. Imagens de vídeo-vigilância e diversos indícios apontam para o envolvimento de agentes sauditas no que terá sido uma fria execução de Jamal seguida de desmembramento e ocultação de cadáver.

Riade admitiu depois que o jornalista de 59 anos foi morto por agentes sauditas
, em resultado de uma operação de extradição que correu mal. Kashoggi deveria ter sido levado para responder pelas suas críticas ao regime saudita, que se tinham tornado um incómodo sobretudo para o príncipe herdeiro. Mohammed bin Salman sempre negou estar envolvido no caso ou sequer ter conhecimento do que sucedeu.
Biden manietado
Muitos analistas e dissidentes exilados sauditas acreditam que, tal como prometeu, Joe Biden irá assumir com Riade uma postura diferente da de Trump quando chegar à Casa Branca, mais firme e exigente. O problema é saber até onde irá o novo Presidente e que dossiers poderá influenciar. Se a pressão para terminar a guerra no Iémen parece provável, inverter o curso de violações dos direitos humanos a nível doméstico parece mais distante. E não será uma prioridade.

O jornal britânico The Guardian cita esta sexta-feira uma fonte não identificada mas alegadamente próxima do pensamento de Joe Biden, segundo a qual "o Presidente eleito mantém o que disse na campanha quanto ao assassínio de Jamal Kashoggi". "Sabemos que há ainda trabalho a fazer, incluindo garantir a transparência necessária", acrescentou prudentemente a mesma fonte.

O caso Kashoggi poderá até ser simples mas as repercussões da divulgação do relatório serão imprevisíveis, como sublinha Safa al Ahmad, um jornalista saudita e ativista dos direitos humanos, exilado desde 2014. "Penso que faze-lo [ordenar a publicação do relatório] será fácil para o Presidente. As ramificações serão profundas", afirmou ao The Guardian.

Há quem discorde e aponte a necessidade de proteger fontes e métodos de investigação. "Penso que será muito improvável" que o relatório venha a ser publicado, opinou Bruce Riedel, um antigo analista da CIA atualmente ligado à Brookings Institution. "Teria de ser altamente editado, censurado e um tal documento não seria muito satisfatório", acrescentou. "Não o fazer iria reduzir de forma significativa a nossa capacidade de analisar ocorrências", explicou.

Uma relatora especial das Nações Unidas para execuções extra-judiciais, exprimiu a sua frustração com tais pruridos. "Eu, pessoalmente, estou farta de as informações terem sempre precedência sobre a Justiça", desabafou Agnès Callamard ao jornal britânico. "Os Estados Unidos escondem tantas informações sobre o assassínio de jornalistas, incluindo a identidade dos mandantes, de dirigentes corruptos e de pessoas que abusam o poder que detêm", indignou-se a relatora humanitária.

A jurista, que acompanha o caso Kashoggi e que deverá assumir a direção da Amnistia Internacional em 2021, está convencida que seria possível publicar o relatório sem comprometer nem ferir suscetibilidades na comunidade de investigação internacional.

"A exigência de justiça, a luta contra a impunidade, requerem que esta informação seja tornada pública", afirmou, para logo sublinhar não ter muitas ilusões quanto ao que fará Joe Biden.

Mesmo que o Presidente-eleito venha a recuar na maioria das suas promessas de campanha, há uma em particular que, a ser cumprida, irá alterar o equilíbrio regional. Trata-se da venda de armas.

"Os sauditas estão a começar a perceber que os bons velhos tempos estão a acabar. Penso que estão a tentar decidir o que fazer e estão especialmente preocupados com a possibilidade de Biden regressar ao Acordo Nuclear com o Irão, ao qual se opõem completamente" e que Donald Trump denunciou, referiu Riedel.
MBS ao ataque
Uma das possibilidades será a possível coincidência de uma nova presidência norte-americana com o fim do reinado de MBS.

O príncipe-herdeiro saudita estará a isolar-se e a dar sinais de alienação, referem os seus detratores. Na origem dos temores de MBS estará a revolta de grande parte dos seus súbditos devido às suas campanhas anti-corrupção e anti-sedição, que nos últimos anos lançaram nas prisões do reino centenas de pessoas à vez, incluindo membros da realeza e empresários, sem acusação ou julgamento.

Os visados mais recentes terão sido vários príncipes da família Bin Jalawi, segunda no reino logo após os Saud. Os relatos não foram confirmados de forma independente mas, a serem verídicos, assumem grande importância. Um responsável norte-americano admitiu ao The Guardian que poderão ser a resposta do príncipe herdeiro a um eventual início de revolta.

O principal rival político de MBS, o anterior príncipe-herdeiro Mohammed bin Nayef, ou MBN, está detido desde março, acusado de crimes diversos, desde tentativa de golpe a corrupção, toxicodependência e conspiração com a Administração Obama.Também detidos permanecem os dois filhos adultos de Saad Aljabri, um ex-diretor dos serviços de informação conhecido pelas suas ligações aos Estados Unidos e que vive no exílio no Canadá.

Biden não é conhecido pela sua proximidade com MBN, que conheceu numa viagem a Riade em 2011. Mas a detenção do ex-príncipe-herdeiro deverá ser uma das questões de violação de direitos humanos a levantar pela sua Administração, a par do caso de Walid Fithaihi, um médico com dupla nacionalidade saudi-americana.

Fitaihi foi condenado no início deste mês a seis anos de prisão depois de ter sido detido em 2017 durante uma campanha anti-corrupção no país. A família do médico afirma que ele foi torturado sob custódia e que os seus únicos crimes foram publicar alguns tweets em apoio à Primavera Árabe e procurar obter a cidadania norte-americana. Os apelos da Administração Trump para a sua libertação foram até agora ignorados.

Também a detenção de Loujain al-Hathloul, ativista dos direitos da mulher e que também terá sido torturada deverá ser analisada pela nova Administração democrata. O processo de al-Hathloul foi transferido para um tribunal especial sobre terrorismo, ao fim de dois anos de detenção sem acusação.
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