Juneteenth. Biden torna dia da libertação dos escravos feriado nacional

por Paulo Alexandre Amaral - RTP
Joe Biden em diálogo com Opal Lee, activista de 94 anos e principal impulsionadora do Juneteenth, depois de assinar o decreto-lei. Oliver Contreras - EPA

"Este não é um dia apenas para celebrar o passado. É uma chamada à acção agora", declarou o presidente norte-americano no momento em que assinou a lei que mais de século e meio depois transforma a celebração dos escravos livres do Juneteenth (uma junção intraduzível das palavras June e nineteenth - 19 de junho, em português) em feriado nacional: o Dia da Independência. Trata-se de uma matéria que invoca não apenas proclamação da libertação dos escravos negros em 1865, mas que põe em cima da mesa a luta pela igualdade da comunidade afro-americana, ferida por episódios recentes de violência policial e acções em curso de supressão do direito de voto.

Mais do que uma efeméride, trata-se aqui de uma luta com mais de século e meio e que continua a fazer sentido travar, nas palavras de Joe Biden. No manifesto de candidatura à Presidência, o democrata deixou claro o objectivo primeiro de curar as feridas de um país estilhaçado por quatro anos que, sob a liderança de Donald Trump, assentaram no divisionismo e na beligerância. Um programa lançado em pleno clima de guerra civil nas ruas, depois de terem saltado para os media vários casos de violência policial contra a comunidade negra.

Esta quinta-feira, Biden, que chegou à Casa Branca também graças ao voto negro, colocou mais um penso na ferida que é a divisão racial nos Estados Unidos. Trata-se de uma luta ainda viva mais de século e meio depois de os emissários de Abraham Lincoln levarem ao Texas a notícia do fim da escravatura nos Estados do Sul. A data assinala o 19 de Junho de 1865, dia em que os soldados da União anunciaram a libertação dos escravos de Galveston, dois anos e meio após a Proclamação da Emancipação (Lincoln).

“Este não é um dia apenas para celebrar o passado. É uma chamada à acção agora. Espero que seja o início de uma mudança na forma como lidamos uns com os outros”, foi o desejo formulado por Joe Biden no momento da oficialização do novo feriado nacional.

A decisão ganha especial relevância dado haver apenas onze feriados nacionais reconhecidos pelo governo federal e ser este o primeiro que é instituído desde que o Congresso aprovou o Dia Martin Luther King Jr., em 1983, e que começou a ser celebrado a partir de 1986.

No entanto, da mesma forma que os Estados a Sul do país ignoraram durante dois anos a directiva de 1863 do presidente Lincoln, que sairia vencedor de uma guerra civil, também agora, em pleno século XXI, o novo feriado que celebra a igualdade entre os seres  humanos falha em gerar consenso. Apesar da chancela massiva do Senado no sentido de instituir o Juneteenth como data oficial, na Câmara dos Representantes catorze republicanos votaram contra o projecto-lei, tornando visível a fractura racial que continua a dividir a sociedade americana.

Muitas das objecções destes republicanos prendem-se com a própria designação do feriado, Dia da Independência, a qual, sublinham, “já existe” e “para todos”, o que torna o 19 de Junho numa data divisionista.

Por exemplo, Chip Roy, representante do Texas, admitindo que o Juneteenth merece ser comemorado, opôs-se ao uso do termo independência: “Esta designação divide desnecessariamente a nossa nação ao criar um Dia da Independência baseado na cor da pele, quando esta é uma questão que devia unir-nos”. Argumento que ecoa nas palavras do republicano Paul Gosar, do Arizona, ao recordar que os americanos já têm “um Dia da Independência e esse aplica-se igualmente a todas as pessoas de todas as raças”.

Há no entanto outras vozes que se ouvem nas comunidades, em particular activistas que procuram operar as mudanças sociais no terreno e que sublinham a necessidade do país, de ter uma data que obrigue os americanos a pensarem no seu significado, um momento que seja um apelo à reflexão sobre os alicerces do edifício norte-americano.

Matthew Delmont, professor de história ouvido pela Associated Press, sublinha a importância da oficialização do 19 de Junho num país onde a maior parte dos americanos brancos nunca tinha ouvido falar desta efeméride antes do Verão de 2020 e dos protestos que se seguiram à morte de George Floyd às mãos da polícia.

“Espero que [o novo feriado] abra um momento no calendário em que todos os anos os americanos possam dedicar algum tempo a pensar seriamente sobre a história do nosso país”, apelou Delmont.

O próprio presidente Biden toca a ideia de que a luta pela igualdade não se faz nestes dias contra correntes e grilhetas, mas em matérias de participação na vida pública e quotidiana, assinalando aqui uma questão crucial para a democracia dos Estados Unidos: as tentativas de supressão do direito de voto das minorias.

Na ressaca da derrota de Trump nas últimas eleições para a Casa Branca, com o ex-presidente a encontrar respaldo em vários correligionários republicanos, têm sido várias as iniciativas para restringir o voto – processo que afectará em particular o eleitorado negro –, sendo muito activas as tentativas de supressão de voto que correm actualmente em alguns dos Estados perdidos pelo Partido Republicano no escrutínio de 2020.

É neste sentido que vários activistas que lutaram pela inclusão do Juneteenth no calendário federal sublinham que esta data deve servir como um lembrete para a luta diária pelos direitos fundamentais da minoria negra. “As nossas liberdades são frágeis e não é preciso muito para que as coisas andem para trás”, declarou Para LaNell Agboga, coordenadora no George Washington Carver Museum, Cultural and Genealogy Center (Texas).
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