Merkel, Le Pen e Hitler

por Filipe Vasconcelos Romão, comentador assuntos internacionais RTP

As redes sociais valem o que valem. Por muito que as critiquemos, a comunicação, hoje, não vive sem elas. Ferramentas como o Facebook ou o Twitter são sobretudo válvulas de escape para quem, antes, não tinha possibilidade de projectar a própria voz, sendo instrumentos de uma certa forma de democratização das sociedades.

Muitas vezes, tendemos a desvalorizar os erros grosseiros ou as críticas radicais que nos chegam via redes sociais. Comparar o incomparável é um dos exageros frequentes. Nos últimos anos, uma das figuras mais vezes alvo desta táctica, sobretudo nos países do Sul da Europa, foi Angela Merkel. No período mais duro da austeridade, não havia manifestação na rua ou post em rede social que não traçasse uma analogia entre o comportamento do governo alemão, na sua gestão da Zona Euro, e as atrocidades cometidas pelos nazis nos anos 30 e 40. Este tipo de discurso abusivo não teria grande importância se não tivesse uma consequência gravíssima: o da banalização do genocídio através da sua comparação com comportamentos desenvolvidos no quadro de um sistema democrático.

Comparar Merkel com Hitler ou a CDU/CSU com o partido nazi representa ignorância ou simples má-fé. Os democratas-cristãos alemães do pós-guerra foram forjados na crítica absoluta ao nazismo e na necessidade de superação de uma parte do passado e de refundação de um Estado. Não deixa mesmo de ser irónico que a austeridade imposta pela Alemanha seja uma consequência da obsessão dos alemães com o controlo da inflação, fenómeno que, entre as duas guerras, potenciou a subida ao poder de Hitler. Também no Portugal revolucionário, o termo “fascista” foi muitas vezes utilizado abusivamente, servindo para rotular muitos dos que se opunham ao processo revolucionário ou que não alinhavam com os partidos e movimentos mais à esquerda.

Esta utilização excessiva, no entanto, não pode servir para considerar que nada na política actual é comparável aos regimes autoritários ou totalitários de extrema-direita. Não é ilegítimo nem falacioso integrar alguns dos partidos ou movimentos populistas de que tanto se tem falado em famílias políticas com laços históricos evidentes com correntes autoritárias ou totalitárias.

Tomemos como exemplo a Frente Nacional (FN) francesa. Jean-Marie Le Pen fundou este partido em 1972, com uma estratégia clara de demarcação em relação à direita gaullista e ao centro-direita liberal. A FN arregimentou várias facções radicais e ultraconservadoras, nunca se tendo demarcado de forma clara da extrema-direita nem do pensamento colaboracionista da França de Vichy. Convirá recordar que este regime, liderado pelo marechal Petain, foi cúmplice das perseguições e da política de extermínio dos judeus levada a cabo pelos nazis. E também sabemos como Le Pen (pai) apoiou todo o tipo de teorias que negam o Holocausto. Em 2015, o fundador da FN viu a sua militância suspensa, mais em função do embaraço que as suas posições provocam à filha do que por uma alteração estrutural do partido.

A comparação entre a evolução da FN e a do neofascista Movimento Social Italiano (que inspirou a sua fundação) põe em evidência dois aspectos importantes: confirma que um partido de extrema-direita pode evoluir para posições moderadas e institucionalizar-se; e comprova que a FN não enveredou por este caminho. O Movimento Social Italiano (MSI), fundado em 1946 por militantes fascistas órfãos da República de Salò, teve desde a fundação uma corrente moderada que controlou o partido durante boa parte da sua história. Em 1993, depois da implosão do sistema de partidos italiano, Gianfranco Fini refunda o MSI, que passa a denominar-se Aliança Nacional (AN), retira-lhe a dimensão radical e coliga-se com a Força Itália de Silvio Berlusconi. Os pós-fascistas farão parte de todos os governos de Berlusconi e, em 2009, a coligação passa a ser um partido, o Povo da Liberdade (dissolvido em 2013), integrado no Partido Popular Europeu.

Ao contrário da AN, a FN levou a cabo uma mera reformulação cosmética e uma adaptação do discurso à necessidade/oportunidade representada pelo declínio da direita tradicional. Não deve, pois, haver receio de afirmar: a candidatura de Marinne Le Pen representa uma direita herdeira dos fascismos, conivente com o racismo, a xenofobia e o encerramento de fronteiras. Atenta contra as liberdade e pode pôr em causa o sistema democrático e o liberalismo na acepção mais ampla da palavra (político, económico e social).

Tem esta reflexão o intuito de afirmar que uma eventual eleição de Marinne Le Pen é sinónimo de extinção da democracia francesa? Não. Pretende antes constar que há uma alteração no paradigma do relacionamento com a democracia e com as liberdades e que começam a surgir lógicas de “factos alternativos” que põem em causa um certo consenso de mínimos em que assentam as democracias-liberais desde o pós- Segunda Guerra Mundial. Esta mudança de paradigma vai permitir compreender facilmente o erro que constitui não perceber onde está a linha que separa os democratas dos fascistas a sério.
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