Ministro angolano brinca com greve de fome e acusa Luaty Beirão de não valorizar a vida

O ministro angolano do Interior aproveitou esta tarde a conferência de imprensa - realizada no âmbito das comemorações dos 40 anos da independência de Angola - para desvalorizar o protesto de Luaty Beirão, que passou 36 dias em greve de fome contra a “prisão arbitrária de 15 activistas” nas cadeias de Luanda. Ângelo Veiga Tavares acusou ainda o activista de dupla nacionalidade luso-angolana de “não dar muita importância ao bem vida”.

RTP /
Manuel de Almeida, Lusa

Por ocasião das comemorações dos 40 anos de independência de Angola, o ministro Ângelo Veiga Tavares aproveitou uma conferência de imprensa para se referir à recente onda de detenções e das greves de fome levadas a cabo por vários activistas em prisões de Luanda, tendo a de Luaty Beirão sido a mais notada dentro e fora do país.

Luaty Beirão e outros 14 activistas foram detidos a 20 de junho passado sob a acusação de estarem a preparar um golpe de Estado e um atentado contra o presidente José Eduardo dos Santos.Nélson Dibango, Benedito Jeremias, Afonso Matias “Mbanza Hamza”, Hitler Jessy Chiconde, Albano Bingobingo são outros dos membros do Grupo dos 15 que terão sofrido violentas represálias na cadeia.


Esgotado o prazo de 90 dias previsto de prisão preventiva, o rapper luso-angolano iniciou um protesto com uma greve de fome.

Não foi contudo o único: Albano Bingobingo, outro membro do Grupo dos 15, esteve também em protesto com uma greve de fome que, de acordo com o site independente Maka Angola, foi realizada sob tortura, sistematicamente levada a cabo pelos guardas prisionais, a mando – continua a defesa – do próprio director da Penitenciária de São Paulo, em Luanda, onde estava encarcerado.

Pouco mais de uma semana depois de Luaty Beirão ter posto um ponto final ao protesto e à greve de fome, o ministro do Interior vem agora criticar a decisão de um “jovem” que “não dá muita importância ao bem vida”.

De acordo com o despacho que chega da Lusa, o ministro que manda nas polícias terá chegado a esta conclusão com base na avaliação de psicólogos: “Posso dar aqui um exemplo, nas suas reuniões, que alguns insistem que era para analisar um livro, e faziam a abordagem da incursão ao palácio presidencial, com crianças nos ombros, com mulheres e velhos à frente, enquanto o seu colega de grupo Domingos da Cruz defendia que, se houvesse intervenção das Forças Armadas, eles deveriam desistir dessa incursão para o palácio presidencial. Para forçar a demissão do presidente da República, o jovem Luaty defendia que não deveriam recuar, que deveriam deixar-se morrer”.
Ministro brinca com greve de fome
Durante a conferência de imprensa, perante os jornalistas, o ministro que detém a pasta das polícias em Angola referiu-se ainda em tom de brincadeira à greve de fome levada a cabo por Luaty Beirão.

“Do último relatório a que tive acesso, ele [Luaty Beirão] estava com uma hemoglobina de 14, se calhar é melhor do que muitos do que estão aqui presentes do ponto de vista de hemoglobina”, afirmou Veiga Tavares, depois de ter garantido que o governo se preocupou em manter o activista vivo e em boas condições, numa “clínica de referência”."[Luaty Beirão] estava com uma hemoglobina de 14, se calhar é melhor do que muitos do que estão aqui presentes".

Referindo-se a Luaty Beirão como “o jovem” - apesar dos 33 anos do rapper – o ministro defendeu a tese de que esta foi uma decisão que não contou com o apoio de ninguém, pelo menos dentro de Angola, falando do episódio como uma espécie de iniciativa isolada dentro da própria “oposição”.

“Registamos, com algum agrado, a intervenção de partidos da oposição, que procuraram juntar-se ao nosso esforço no sentido de persuadir, particularmente, o jovem Luaty a não continuar na greve de fome e fomos abertos a todos quantos se predispuseram para o fazer”, afirmou o ministro do Interior, envolvendo Rafael Marques - o mais conhecido activista angolano e um dos maiores críticos de regime - nas tentativas de demover o rapper luso-angolano.

“O próprio senhor Rafael Marques conseguiu o meu número de telefone, ligou para mim, manifestou o interesse em recolher assinaturas dos demais para levar ao Luaty para demovê-lo, autorizamos, ele foi, recolheu as assinaturas, disse-nos que estava a preparar um texto que era para o Luaty depois assinar para levantar a greve de fome, vocês viram o texto preparado pelo senhor Rafael Marques, que depois foi assinado pelo Luaty e tornado público”, explicou o governante angolano.
"Manifestações são ilegais"
Para o ministro angolano, “o grande problema das manifestações é que as pessoas só analisam a parte que lhes convém, e na parte que não lhes convém já não se preocupam (…) Por exemplo, regra geral as manifestações vêm já eivadas de vícios e violando, à partida, algo que está previsto na lei das manifestações”.

Veiga Tavares explicou perante os jornalistas que a legislação prevê que nestes protestos não se ofendam órgãos de soberania: “Logo, à partida quando se pede ou se notifica a estrutura governativa, no caso dos governos provinciais, regra geral é já para ofender um órgão de soberania que é o presidente da República, ou seja, já vem eivada de ferimento daquilo que está estabelecido na lei e certamente os órgãos de polícia devem fazer cumprir a lei”.

Dando o exemplo de uma cidadã italiana que foi convidada a abandonar Angola (em 2014) por se reunir com o grupo activista – transmitindo orientações no sentido de provocarem manifestações violentas, com mortes – o chefe das polícias justificou que o governo se mantenha vigilante face a movimentações internas e externas.

“Por isso é que em alguns casos, a polícia prefere não permitir que tais manifestações atinjam um nível de confronto para atingir esse fim”, sublinhou o ministro, para acrescentar que também em alguns círculos diplomáticos, alguns cidadãos com esse estatuto instigavam os jovens do movimento.

“Haver confrontos para permitir - era o termo que utilizavam - a intervenção do ocidente e, por caricato que pareça, a cifra era sempre a mesma, entre 20 e 25 mortos. Portanto, o que se estava a passar não era aquela habitual tentativa de simples manifestação, era coisa bem diferente, era coisa bastante ousada. Ou seja, no meu entendimento, havia sim alguém por trás a arregimentar e a aproveitar o estado de alma desses jovens para fins diferentes daqueles que estão mais desenvolvidos do ponto de vista democrático”, acusou.
Da ditadura à democracia
O que está em causa com o Grupo dos 15? Um livro: “From Ditactorship to Democracy”, obra escrita por Gene Sharp. O autor, ele próprio detido nos Estados Unidos por se ter manifestado contra o recrutamento obrigatório para a Guerra da Coreia, aponta formas pacíficas de resistência e combate contra os regimes ditatoriais.Gene Sharp, professor na Universidade de Massachusetts desde 1972, foi várias vezes nomeado para Nobel da Paz.

Fundou a Albert Einstein Institution, uma organização sem fins lucrativos dedicada à investigação e estudos sobre as ações políticas não violentas.



O livro foi publicado em 1993 para o movimento democrático de Myanmar (antiga Birmânia) após a detenção de Aung San Suu Kyi, a resistente à junta militar e Prémio Nobel da Paz.

Foi num dia em que discutiam as ideias desta obra que o grupo de activistas angolanos foi preso pela polícia. A notícia é agora também que o livro vai ser traduzido para Português, pela editora Tinta da China.

À agência Lusa, Bárbara Bulhosa, responsável da editora, explicou que o livro será editado em Português até final do ano e que o autor vai ceder os direitos de publicação aos detidos angolanos: “Expliquei a situação ao Gene Sharp e ele cedeu os direitos de autor. Ele não quer receber nada da edição portuguesa. Cede os direitos de autor aos presos e às famílias”.
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