Multilateralismo, Irão e os risos na Assembleia Geral. Os principais momentos do dia nas Nações Unidas

por Andreia Martins - RTP
Carlos Barria - Reuters

Na abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas, os discursos de António Guterres e Donald Trump marcaram a ordem do dia em sentidos diametralmente opostos. Se o secretário-geral da ONU apelou ao multilateralismo num “mundo cada vez mais caótico”, o Presidente dos Estados Unidos fez o elogio do patriotismo contra “a ideologia do globalismo”. O líder norte-americano surgiu praticamente isolado na questão nuclear iraniana e uma das expressões mais sonantes da sua alocução colheu o escárnio do conclave reunido em Nova Iorque.

"Em menos de dois anos, a minha Administração alcançou mais do que quase qualquer outra administração na história do nosso país". Foi uma das primeiras frases do discurso de Donald Trump, proferido esta terça-feira durante os trabalhos da Assembleia Geral das Nações Unidas.  

A autocongratulação do Presidente norte-americano foi recebida com risos abafados entre os principais líderes mundiais e representações diplomáticas presentes em Nova Iorque, algo que Trump não deixou passar despercebido. “É verdade. Não estava à espera dessa reação, mas tudo bem", apontou. A gargalhada irrompeu livre pela sala. 



De facto, o segundo discurso perante a Assembleia Geral das Nações Unidas foi bastante mais brando e ligeiro que o primeiro, proferido em setembro de 2017. Se no ano passado o Presidente norte-americano ameaçava “destruir totalmente” a Coreia do Norte e o seu “rocket man”, num tom assertivo pouco comum naquela tribuna, hoje sublinhou o “enorme progresso” alcançado ao longo dos últimos meses nas “audaciosas” negociações com Pyongyang.  

Num discurso de pouco mais de meia hora, o líder norte-americano aproveitou para lembrar aos interlocutores a cimeira de Singapura, em que esteve reunido com o líder norte-coreano, Kim Jong-un. Um passo que classifica como essencial para a “desnuclearização da Península Coreana”, reconhecendo porém que “muito continua por fazer”.  

Ainda que num tom menos beligerante que em discursos anteriores, Donald Trump apontou para a “ditadura corrupta” do Irão como ameaça principal, denunciando a “agenda sangrenta” do país na Síria e no Iémen.  

O Presidente norte-americano saiu em defesa da decisão, anunciada em maio último, de retirar os Estados Unidos do "horrível" acordo sobre o programa nuclear iraniano, assinado em 2015 por várias potências a nível global, incluindo os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas e a Alemanha.  

"Não podemos permitir que o principal patrocinador do terrorismo em todo o mundo tenha em sua posse as armas mais perigosas do planeta", apontou o líder norte-americano.  

"Pedimos às nações de todo o mundo que nos ajudem a isolar o regime iraniano enquanto este prosseguir a sua política de agressão", referiu ainda Donald Trump, lembrando as sanções contra o país que entraram em vigor durante o mês de agosto e as que serão impostas já no início de novembro, às quais a União Europeia tenta resistir.  

A par da questão iraniana, os ataques à Venezuela de Maduro e as taxas alfandegárias recentemente aplicadas contra Pequim, um dos temas que fica do discurso do Presidente norte-americano é a defesa da “soberania americana” em detrimento de uma “governação global”.

"Honro o direito de todas as nações do mundo de seguirem e respeitarem os seus costumes, crenças e tradições. Os Estados Unidos não vos vão dizer como viver, trabalhar ou rezar. Apenas vos pedimos para que respeitem também a nossa soberania", frisou Donald Trump.  

Trump foi mais longe, ao criticar em plena Assembleia Geral o Conselho de Direitos Humanos da ONU por “proteger autores de abusos dos Direitos Humanos” e o Tribunal Penal Internacional, sem “legitimidade e autoridade” segundo o líder norte-americano.  

O Presidente norte-americano anunciou ainda a limitação para 25 por cento da contribuição do país para as missões de paz da ONU (até agora contribuía com 28 por cento, cerca de 7.900 milhões de dólares). Referiu também que a Administração norte-americana vai rever a ajuda concedida bilateralmente a outros países do mundo e que esse apoio se manterá apenas para países “francamente amigos”.  

Trump deixou também acusações à Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP): "Defendemos muitos destes países e eles depois aproveitam-se de nós, impondo altos preços no petróleo. Não é bom. Queremos que parem de aumentar os preços".

O ataque velado ao multilateralismo e à “burocracia mundial não eleita e irresponsável” contrastou com o apelo deixado horas antes pelo secretário-geral das Nações Unidas, no discurso de abertura da sessão da Assembleia Geral. De tal forma que Marcelo Rebelo de Sousa optou mesmo por não aplaudir o homólogo norte-americano no fim do discurso.  



O Presidente português explicou entretanto que quis manter-se fiel à doutrina do multilateralismo, um tema que irá estar presente no discurso do chefe de Estado português à Assembleia Geral das Nações Unidas, já esta quarta-feira.   

António Guterres diagnosticou ao mundo “uma forma grave de perturbação do défice de confiança” e uma “ordem mundial cada vez mais caótica”. As relações de poder “não menos claras, os valores universais estão a sofrer erosão, os princípios democráticos e o Estado de Direito minados”, lamentou o secretário-geral da organização.  

Guterres olha para a situação atual como uma transição para a lógica “multipolar”, de uma forma que não garante, no entanto, uma situação de paz ou solução global para os problemas.

“Devemos renovar os nossos compromissos para com uma ordem assente em regras, com as Nações Unidas no centro”, apontou ainda, realçando a importância do combate ao unilateralismo e revitalização do multilateralismo, pedra angular na fundação da ONU. Sem mencionar líderes atuais, Guterres alertou para os perigos do populismo, do isolacionismo e para as lições dos nacionalismos exacerbados do século XX. 


Apelo ao diálogo  

Ainda na sessão desta terça-feira, Emmanuel Macron ultrapassou largamente os minutos de que dispunha para falar à Assembleia Geral das Nações Unidas, mas a sua intervenção colheu um dos aplausos mais fortes da tarde. À imagem do que foi dito pelo secretário-geral das Nações Unidas, o Presidente francês assumiu grande preocupação com a "profunda críse" que a ordem internacional e o multilateralismo atravessam. A questão iraniana também esteve presente no discurso.

“Alguns optam pela lei do mais forte, mas isso não protege nenhum povo. Nós escolhemos outro caminho: o multilateralismo. (...) O que é que vai realmente resolver a situação no Irão? A lei do mais forte? A pressão de um só? Não!”, disse o líder francês, saindo em defesa “do diálogo e do multilateralismo” para pôr fim ao impasse atual.

"Sabemos que o Irão estava na rota para o armamento nuclear. O que é que os parou? O acordo de Viena de 2015", acrescentou.

Macron deixou ainda uma sugestão para o cumprimento de uma das exigências deixadas por Donald Trump com a OPEP como destinatária. “Seria bom para o preço do petróleo que o Irão o pudesse vender. Isso seria bom para a paz e para o fluxo mundial do preço do petróleo”, apontou o Presidente francês.  

Uma das sanções draconianas que a Administração se prepara para impor contra Teerão a partir de 5 de novembro versa, precisamente, a imposição de um embargo internacional às exportações iranianas de petróleo.

No decorrer da sessão desta terça-feira ainda houve tempo para uma resposta de mais líderes mundiais às palavras de Donald Trump. Desde logo pelo Presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, que apelou a uma restruturação da ONU para garantir maior eficiência, mas que se opôs ao “protecionismo” norte-americano e à utilização de sanções económicas como “armas”, em referência às recentes taxas impostas por Washington que levaram à forte desvalorização da lira turca nos últimos meses.  

Sem mencionar os Estados Unidos, Erdogan criticou os países que “criam o caos”. “Ninguém pode ficar calado perante o cancelamento arbitrário de acordos comerciais, a expansão do protecionismo e a utilização de sanções económicas como arma”, apontou.

Bastante mais direto foi o Presidente iraniano, Hassan Rouhani, que também falou esta terça-feira à Assembleia Geral da ONU para sublinhar que o acordo nuclear, negociado sob a égide das instituições multilaterais, “não é um pedaço de papel” e que a segurança internacional não pode ser “um brinquedo” nas mãos da política interna norte-americana.  

Rouhani classificou as sanções económicas recentemente reestabelecidas pela Administração Trump como medidas de “terrorismo económico” e considerou “absurdo” o discurso de Donald Trump anteriormente proferido. 

Sem referir as negociações bilaterais de Singapura entre os Estados Unidos e a Coreia do Norte para a desnuclearização da Península Coreana, o líder iraniano apelou ao regresso às negociações no seio das Nações Unidas e voltou a descartar qualquer hipótese de negociações bilaterais diretas com os Estados Unidos.   

“Para que o diálogo aconteça não são necessárias fotografias. O diálogo pode ser retomado aqui mesmo, nesta assembleia, pela mesma pessoa que denunciou o acordo”, deixou o líder iraniano em forma de desafio.
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