Novas provas de tortura e de execução de civis ucranianos por russos em Bucha

por RTP
Um cão passeia-se entre os destroços de Bucha, Ucrânia Reuters

Uma profunda investigação do The New York Times recolheu diversos indícios que mostram atos das tropas russas em Bucha que podem ser considerados crimes de guerra e que comprovam acusações de execução sumária e de tortura feitas no início de abril e negadas por Moscovo.

As provas consistem em vídeos e imagens satélite, assim como testemunhos oculares e outros dados, obtidos em Bucha junto das autoridades ucranianas e pelos próprios investigadores. Referem fatos ocorridos dia 4 de março de 2022, duas semanas após o início da invasão russa.

Implicam dois Regimentos paraquedistas russos, o 104º e o 234º, identificados através de emblemas, caixas de armamento e munições e uma lista de nomes, deixados para trás e encontrados no local e que permitiram identificar soldados através de redes sociais.

A extensa investigação do The Times conseguiu identificar com nomes, idade e profissão pelo menos nove ucranianos membros das forças de defesa locais, civis antes da guerra e executados pelos russos no início de março de 2022. Descreve e mostra os seus últimos momentos.

Um sobrevivente contou o que viveu e como conseguiu fugir mesmo ferido, outro é procurado pelas autoridades ucranianas por alta traição.

Os acontecimentos foram testemunhados por vários vizinhos, entrevistados pelos repórteres.

As provas mais importantes serão contudo imagens em movimento, recolhidas pelo The Times, que constituem a prova mais clara que os homens estavam sob custódia russa minutos antes de serem executados.
Uma sweatshirt azul
Dois vídeos diferentes, um captado por uma câmara de vigilância e outro por um telemóvel, mostram nove homens a marcharem sob mira de armas empunhadas por soldados russos ao longo de uma estrada em Bucha, um subúrbio da capital ucraniana, Kiev. Alguns dos cativos estão curvados e seguram no cinto do que caminha à frente, outros têm as mãos acima das cabeças. Ouve-se um soldado a dar ordens. “Vai para a direita, cadela!”

“Os reféns estão ali deitados, de encontro à cerca”, descreve a pessoa que capta o vídeo no telemóvel a partir de uma casa vizinha. O homem conta, “um, dois, três, de certeza, quatro, cinco, seis…” No total são nove, os detidos. Um deles enverga uma sweatshirt azul vivo com capuz, distintiva.

O vídeo termina ali.

Testemunhas contaram contudo aos repórteres o que sucedeu depois. Os soldados levaram os homens para trás de um edifício de escritórios ali próximo que havia sido transformado em base de operações improvisada. Ouviram-se tiros. Os cativos não regressaram.

Um outro vídeo captado por um drone no dia 5 de março e também conseguido pelo The Times, é a primeira prova visual que comprova os testemunhos oculares.

Mostra os corpos mortos abandonados no chão ao lado do edifício de escritórios da Rua de Yablunsla, 144, vigiados por dois guardas russos. Entre os corpos é visível um bocado vívido de cor azul – o detido da sweatshirt, refere o repórter.
Massacre em Bucha, Ucrânia, março 2022 Foto - Vadim Ghirda/Associated Press
Semanas de investigação
A fotografia dos corpos executados e abandonados no pátio, alguns com as mãos atadas, foi uma das várias que chocaram o mundo no início de abril depois das tropas russas se terem retirado de Bucha. Moscovo iria denuncia-las ao mais alto nível como encenação, “provocação e embuste”. Semanas de investigações do The New York Times desmentem as alegações russas e revelam novas provas – incluindo os três vídeos – de que os paraquedistas russos reuniram e executaram intencionalmente os homens fotografados no pátio, implicando diretamente estas forças num provável crime de guerra.

Pedidos de esclarecimentos enviados pelo jornal norte-americano não obtiveram resposta nem comentários por parte dos ministérios russos dos Negócios Estrangeiros e da Defesa.

Para revelar o que sucedeu a estes homens, o The Times passou semanas em Bucha a entrevistar um sobrevivente, testemunhas, médicos legistas e oficiais da polícia e do exército.

Os repórteres recolheram vídeos do dia da execução ainda não publicados, até agora a única prova dos últimos momentos de vida das vítimas. O jornal passou a pente fino as redes sociais por relatos de desaparecimento, falou com familiares dos detidos e, pela primeira vez, identificou todos os homens executados e a razão da maioria deles ter sido visada.

Eram maridos e pais, trabalhavam em supermercados e em fábricas, e antes da guerra viviam vidas civis normais.

Com a interdição de sair do país aplicada aos homens ucranianos, a par de um desejo de proteger a sua comunidade, a maioria alistou-se numa das forças de defesa locais dias antes de serem mortos.

Quase todos viviam próximo do pátio onde os seus corpos foram deixados praticamente um mês sem sepultura.
Identificando os russos
Os soldados russos entraram em Bucha no final de fevereiro, dias após o início da guerra, durante o avanço sobre Kiev. As forças ucranianas estavam à sua espera e devastaram as primeiras tropas paraquedistas numa emboscada. Relatos de mortes e entrevistas a soldados russos prisioneiros, publicadas por um Youtuber ucraniano, indicam que pelo menos duas unidades – os Regimentos de Assalto Aerotransportados 104º e 234º - sofreram baixas pesadas.

Os russos retiraram e reagruparam antes de regressar a 3 de março, ao longo da Rua Yablunska, uma estrada longa que atravessa a cidade.

Imagens de câmaras de vigilância obtidas pelo The Times mostram que os soldados, tal como os que haviam sofrido a emboscada, eram paraquedistas.

O vídeo mostra-os a conduzir veículos - modelos MD-2, BMD-3 e BMD-4 – quase exclusivamente utilizados pelas Forças Aerotransportadas Russas, de acordo com especialistas do Instituto Internacional de Estudos estratégicos e o Instituto Real dos Serviços Unidos, refere o jornal.

Os paraquedistas patrulharam a área com buscas casa-a-casa, operando a partir do número 144 da Rua Yablunska, um edifício de escritórios com quatro andares, transformado em base e hospital de campanha.
Encurralados
A cerca de 275 metros dali, no número 31, Uvan Skyba, um empreiteiro de 43 anos, e cinco outros combatentes estavam de serviço a um posto de controlo improvisado quando os russos regressaram. Entre eles possuíam uma granada, coletes à prova de bala e uma espingarda, afirmou Skyba ao The Times.

Alertados via rádio para o regresso dos russos a Bucha encaminhando-se na sua direção, esconderam-se numa casa ao lado do posto de controlo juntamente com a proprietária, Valera Kotenko, de 53 anos, que lhes estava a trazer chá e café, contou Skyba. Juntaram-se-lhes depois mais dois combatentes, Andriy Dvornikov e Denyz Rudenko, o homem da sweatshirt azul. Enquanto se escondiam enviaram mensagens texto e telefonaram aos seus entes queridos. Rudenko enviou um sms ao seu melhor amigo a dizer que estavam encurralados. “Não ligues. Falo mais tarde”, escreveu.

Os homens ficaram ali toda a noite e na manhã de dia 4 perceberam que lhes era impossível escapar. “Estamos cercados” escreveu novamente Rudenko. “Para já estamos escondidos. Estão a disparar a partir de veículos armados com calibres pesados”.

Dvornikov, um condutor de entregas, falou à sua mulher, Yulia Truba, pelas 10h20 da manhã, contou ela ao The Times. “Não conseguimos sair. Falo quando falar”, disse, antes de lhe pedir para apagar todas as mensagens e se preparar para fugir. “Amo-te”, concluiu.

Cerca de uma hora depois, os soldados russos que faziam buscas casa a casa descobriram os homens e forçaram os nove e a dona da casa a saírem da casa sob a mira das armas, afirmou Skyba.

Os soldados esquadrinharam os homens à procura de tatuagens a indicar filiação militar e forçaram alguns a descalçarem-se e a despir os casacos de inverno. Depois marcharam-nos até ao número 144.
Executados
O que se passou a seguir foi descrito ao The Times por Skyba e sete outras testemunhas que as forças russas também reuniram em casas vizinhas e que mantiveram num grupo separado.

Estas disseram que viram o grupo de detidos no pátio frente à base russa, com as camisas puxadas sobre as cabeças. Yura Razhik, de 57 anos, morador da casa em frente ao nº 144, disse que alguns tinham as mãos atadas.

Os soldados russos fizeram-nos ajoelhar e depois dispararam sobre Vitaliy Karpenko quase imediatamente, disse Skyba. Razhik também assistiu ao disparo. Skyba e outro detido, Andriy Verbovyi, foram levados para dentro do edifício, contou o primeiro, onde foram questionados e espancados, antes de Verbovyi ser morto a tiro. Os soldados levaram de volta Skyba ao pátio de estacionamento onde os outros responsáveis pelo posto de controlo esperavam, detidos.

Um dos homens admitiu a cera altura aos russos que eram combatentes, disse Skyba aos repórteres, e esse homem, não identificado pela reportagem, acabou por ser libertado.

As autoridades ucranianas começaram depois a investiga-lo, afirmou um comandante militar local. Um documento oficial visto pelo The Times especificou que está acusado de “alta traição”.

Os soldados discutiram entre si o que fazer com os restantes homens. “Livrem-se deles, mas aqui não, para os corpos não ficarem por aí”, disse um deles de acordo com o relato de Skyba.

Dois soldados levaram-nos então para o pátio ao lado do edifício, onde se encontrava já o cadáver de outro homem, contou Skyba. O The Times identificou essa vítima como Andriy Matviychuk, de 37 anos, um combatente que tinha desaparecido no dia anterior. De acordo com o cerificado de óbito, foi morto com um tiro na cabeça.

Rashik e outras testemunhas detidas fora do edifício referiram ter visto os soldados levarem os homens para fora do seu campo visual, seguindo-se tiros.
Sobrevivente
“Fui atingido e caí. A bala perfurou o meu lado”, contou Skyba.

Fotografias dos seus ferimentos mostram o ponto de entrada e de saída do projétil no lado esquerdo do abdómen. Um médico em Bucha que o tratou e um relatório médico revisto pelo The Times confirmaram o ferimento.“Caí e fingi-me de morto”, disse. “Não me mexi nem respirei. Estava frio cá fora e podia-se ver a respiração das pessoas”, contou.

Skyba deixou-se ficar deitado enquanto os soldados disparavam novamente contra homens feridos que ainda se mexiam. Esperou cerca de 15 minutos até já não ouvir as vozes dos soldados. Depois levantou-se e correu.

Tetyana Chmut, cujo jardim confina com o pátio do nº 144 da Rua Yablunska, integrava com a família o grupo de residentes capturados e depois libertados pelos russos.

No final do dia, quando fugiu de casa para se refugiar na cave de uma vizinha, viu os corpos deitados no pátio. Outra vizinha, Marina Chorna, viu-os de novo dois dias depois quando emergiu da sua cave após os soldados russos que lhe tinham ocupado a casa se terem ido embora.

Os corpos dos homens abatidos no parque de estacionamento e dentro do edifício foram levados para o pátio e, ao lado das outras seis vítimas, ficariam ali quase um mês.
Vestígios russos
Quatro semanas depois, após as forças russas terem retirado de Bucha, os reporters do The Times visitaram a cena das execuções. As paredes e os degraus do edifício estavam cheias de buracos de balas.Do outro lado do pátio, espalhadas a escassos metros do local onde jaziam os corpos, encontravam-se cartuchos vazios de 7.62x54R usadas pelas metralhadoras PK soviéticas e pelas espingardas de snipers Dragunov, equipamento de série das tropas russas. Os jornalistas também descobriram um cartucho 7.62x54R intacto dentro do edifício.

Outras provas deixadas pelos russos apontam para duas unidades específicas de paraquedistas que podem ter ocupado o local.

Restos de fitas de caixotes de armas e munições listam as unidades 32515 e 74268, que correspondem respetivamente aos Regimentos de Assalto Aerotransportados 104º e 234º. Ambas as unidades sofreram perdas pesadas na primeira vez que tentaram entrar em Bucha.

Investigadores as Forças de Segurança da Ucrânia, SBU, entregaram ainda ao The Times a fotografia de um emblema militar recuperado dentro do edifício com a identificação do Regimento 104º, e uma lista dos soldados russos ali encontrada.

Ao pesquisar os nomes nas redes sociais e outras bases de dados, o The Times descobriu que pelo menos cinco deles tinham ligações ao Regimento 104º. Outros publicaram imagens deles próprios com bandeiras paraquedistas ou em uniforme paraquedista. Alguns colocaram a sua localização como Pskov, cidade base de ambos os Regimentos, 104º e 234º.

Além dos soldados russos serem passíveis de julgamento por crimes de guerra também os seus comandantes incorrem a mesma possibilidade, se se provar que estavam ao corrente das ações dos seus subordinados.
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