Novo coronavírus. Fazer chegar vacinas aos países pobres é mais do que uma questão de humanidade

por Paulo Alexandre Amaral - RTP
EPA

Os países desenvolvidos têm garantido um quase monopólio das vacinas contra o novo coronavírus, mas a distribuição das doses necessárias aos países mais pobres, quase todos no hemisfério sul, é uma questão que afecta todo o mundo de forma global.

O termo pandemia remete a questão do novo coronavírus para uma plataforma global, tornando, desde logo, obrigatório que a luta se faça numa coordenação de esforços, única forma de precaver surtos alternados da doença num prolongar indefinido da situação. A ideia de muitas nações parece assentar neste princípio de solidariedade, com a Organização Mundial da Saúde (OMS) e Nações Unidas à cabeça. Trata-se, de facto, não apenas de uma questão de humanidade, como também da única opção lógica para erradicar a covid-19.

No entanto, os nacionalismos jogam aqui o papel de intruso naquela que é vista como a fórmula ideal para debelar a pandemia. O açambarcamento de unidades de vacina poderá, nos meses que vêm, mostrar-se contraproducente e vir mesmo a mostrar resultados contrários ao que se pretende, face à mobilidade da população mundial. A assimetria na distribuição de vacinas é assinalada num recente artigo da Associated Press com dois exemplos: enquanto o Canadá, com os seus pouco mais de 38 milhões de habitantes, procura assegurar dez doses para cada pessoa, a Serra Leoa apenas tinha vacinado 1 por cento da população em junho passado. Trata-se de uma comparação possível, mas os exemplos são muitos mais e nem o mecanismo Covax – que visa a distribuição solidária de vacinas pelos países mais pobres – está a conseguir amenizar este fosso.

A reabertura das economias nacionais dos países mais ricos representou aqui um argumento fulcral no falhanço da entrega das vacinas aos países mais pobres, incapazes de vacinar os grupos de risco e os mais vulneráveis, enquanto o Ocidente alargava já os planos de vacinação a grupos cada vez mais jovens, sob o pretexto de que, não sendo estes particularmente afetados pela doença em si, o facto é que continuavam a ser um veículo poderoso para o vírus, contribuindo assim os jovens para disseminar a doença de forma contínua e impedindo o regresso a uma vida o mais próxima possível do que era o normal pré-pandemia.

Esse pânico acabou por legitimar preocupações locais, quando inicialmente se encarara a luta contra o SARS-COV-2 como uma narrativa comum aos dois hemisférios, Norte e Sul, unindo como nunca ricos e pobres num objetivo comum.

O milionário filantropo Strive Masiyiwa classificou este esquema de “arquitetura deliberada de injustiça”.

“Não temos acesso a vacinas nem como donativo nem disponíveis para compra. Estou surpreendido? Não, porque já foi assim com a pandemia do HIV (sida). Oito anos depois de as terapêuticas estarem disponíveis no Ocidente, nós não as recebemos e perdemos 10 milhões de pessoas”, afirmou Masiyiawa durante uma conferência, de acordo com a citação da Associated Press.
 
“É pura matemática. Nós não temos acesso. Não temos milagre da vacina”.

Terá sido fulcral nessa decisão dos países ricos o facto de a pandemia ter atacado com particular virulência na Europa e nos Estados Unidos. Apesar de os índices de preparação para lidar com um problema desta magnitude terem sido atestados nas nações mais ricas, quando em março de 2020 a OMS deu por finda a situação de pandemia, logo se percebeu que todos os planos eram demasiado escassos para debelar a doença mesmo nos sistemas de saúde mais avançados do planeta.

Christian Happi, professor da Universidade Redeemer da Nigéria e membro do comité consultivo científico da CEPI (Coligação para a Inovação na Preparação contra Epidemias) refere que “muito cedo se disse que seria importante ter uma plataforma em que todos os países pudessem conseguir vacinas, onde houvesse responsabilidade e transparência. Mas estávamos convencidos que os países ricos iriam financiá-lo para os países em desenvolvimento”. O que não esperavam, referiu, é que a pandemia atacasse primeiro e com mais força na Europa e nos Estados Unidos. Ou que o diagnóstico de preparação para uma situação deste nível nas economias mais avançadas viesse a revelar-se demasiado otimista.

Nesse momento, acrescenta Happi, os especialistas mundiais em saúde perceberam desde logo que os países ricos até “podiam pôr a assinatura num papel dizendo acreditar na equidade, mas assim que a realidade caísse fariam o que quisessem”.

De facto, em abril do ano passado, com a promessa de resultados numa vacina eficaz contra o novo coronavírus, a AstraZeneca acabaria por prometer a entrega de 400 milhões de doses a Estados Unidos e Reino Unido. Logo atrás, vieram os países da União Europeia. Alguns factores comuns à clientela das primeiras vacinas: era nesses países que estavam estabelecidos os laboratórios, as unidades de produção capazes de fabricar as doses tão aguardadas e o dinheiro necessário para colocar a máquina a andar.

AstraZeneca/Oxford, Pfizer/BioNTech e Moderna estavam de facto em andamento e a todo o vapor. Nesse primeiro momento de euforia, perante uma solução que muitos temiam que viesse a tardar alguns anos, a última coisa coisa em que os decisores pensaram foi na introdução de cláusulas que agora se revelam em falta: assegurar que as vacinas fossem distribuídas de forma justa; e que, a dado momento, pudessem ser levantadas as patentes de forma a alargar a produção e cobrir todos os territórios em necessidade.

Os Estados Unidos chegariam a invocar a Lei de Produção da Defesa, uma lei federal de 1950 em resposta ao início da Guerra da Coreia que integrava o esforço de defesa civil e mobilização de guerra no contexto da Guerra Fria. O presidente Donald Trump fê-lo por 18 vezes e o seu sucessor, Joe Biden, pelo uma, de forma a impedir a saída dos Estados Unidos de componentes das vacinas ou das próprias vacinas, o que abriu pela primeira vez a perspetiva de um cenário de escassez no resto do mundo.

Aberta que estava a corrida às vacinas com o lançamento da operação Warp Speed dos norte-americanos, a Covax apenas foi anunciada um par de semanas depois, com o Serum Institute of India como principal fornecedor fornecedor para os países em desenvolvimento, o que fazia já antever que chegava tarde demais, apesar do apoio de OMS, CEPI e da Fundação Gates. Fundamentalmente, a Covax debatia-se logo no seu nascimento com a falta dos fundos necessários para ir a jogo e ganhar os contratos com as grandes farmacêuticas que garantiriam os fornecimentos futuros.

A questão das patentes não poderia passar nem passou ao lado desta corrida. Costa Rica e OMS tinham um plano para a criação de uma plataforma de partilha de tecnologia que permitisse expandir a produção patrocinada de vacinas, mas nenhum dos laboratórios concordaria em partilhar as suas investigações e, por conseguinte, abrir mão das suas patentes. O próprio milionário das novas tecnologias e filantropo Bill Gates, que estava por trás da Covax, defendeu os direitos de propriedade intelectual como a melhor forma de acelerar a inovação.

A esta retórica está subjacente a ideia de que os laboratórios investiram largas somas na investigação das vacinas e que era um direito seu recuperar esse investimento. No entanto, é sabido que larga parte do desenvolvimento das vacinas saiu dos bolsos dos cidadãos através dos subsídios públicos colocados nas investigações, tendo os governos nessa altura um trunfo para os novos contratos que foram sendo assinados com as grandes farmacêuticas.

Mohamed Slaoui, investigador belga escolhido por Donald Trump para encabeçar o projeto Warp Speed na busca de uma vacina, admite que, face ao dinheiro público envolvido, nessas fases posteriores tanto os Estados Unidos como os restantes países poderiam ter exercido mais pressão junto das farmacêuticas para partilharem os seus conhecimentos.

“Do ponto de vista geopolítico, é fundamental que o façam”, defende Slaoui, tendo em consideração o tempo que está a levar a pandemia. Uma perspetiva que encontra defensores deste lado do Atlântico. Clemence Auer, negociador das vacinas para a União Europeia no último verão, lamenta que a questão da suspensão da propriedade intelectual das farmacêuticas como um catalisador para a produção massiva das vacinas não tenha sequer sido levantada.

“Nós tínhamos um mandato para comprar vacinas, não para falar de propriedade intelectual”, afirmou Auer, seguro de que “a comunidade global devia ter tido essa discussão em 2020 (…) Talvez devêssemos tê-lo feito no ano passado, mas agora é tarde demais. É chorar sobre leite derramado”.

O levantamento das patentes como o caminho para acelerar a produção e criar condições para levar a vacina a todos os cantos do hemisfério sul foi uma questão também abordada pelo pensador norte-americano Noam Chomsky. Numa entrevista recente, Chomsky lamentava que as grandes farmacêuticas se agarrassem às suas patentes vincando uma maior preocupação com o lucro do que com a vida humana, com os números da pandemia a chegarem aos quatro milhões de mortos.

“A menos que as vacinas vão para o Sul, para os países mais pobres, para a África, para a Ásia, a menos que eles obtenham vacinas rapidamente, o vírus vai sofrer mutações. Já está a acontecer, temos mais tensões letais. Podemos ter uma coisa como ébola, que é tão letal que não se pode fazer nada. Em breve, vai espalhar-se de volta para a Europa”, referiu Chomsky ao site de notícias Znet.

Chomsky questiona: “O que estamos a fazer? Agarramo-nos às vacinas, recusando dá-las a África e Ásia”.

“Não é apenas imoral, especialmente tendo em conta o que a Europa fez a estas áreas ao longo dos séculos, é suicida (…) Grande parte disso é o proteger dos chamados direitos de propriedade intelectual das grandes empresas farmacêuticas. Temos de ter a certeza que eles têm lucros exorbitantes, mesmo que nos matemos”, lamenta.

É nesta conjuntura que os vários governos começaram a garantir lotes de vacina para as suas populações, com a Covax incapaz de forçar uma negociação.

“Com o passar do tempo e ficando claro que candidatos a conseguir a vacina seriam os primeiros a chegar, os governos que tinham recursos compraram os fornecimentos”, explica o chefe da CEPI, Richard Hatchett, para concluir que, meses mais tarde, quando finalmente tinha o dinheiro necessário, a Covax estava à espera no fim da fila, falhando assim o objectivo de assegurar as vacinas para os países mais pobres e passando a depender de doações esporádicas e insuficientes.
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