O assassínio de Khashoggi e o "longo braço" dos serviços secretos

por RTP
Reuters

O assassínio do jornalista Jamal Khashoggi no Consulado saudita em Istambul está longe de ser caso único, ou raro. Raptos e assassínios de opositores em países estrangeiros, levados a cabo pelos serviços secretos, têm um longo historial. Muitos desses crimes têm ficado impunes.

Não será uma surpresa recordar que os agentes secretos nazis fazem parte do historial e mesmo que um dos exemplos do seu terrorismo de Estado é, em Portugal, o rapto do jornalista Berthold Jacob. Tratava-se de um jornalista alemão, pacifista, que realizara vários trabalhos de investigação sobre as execuções extrajudiciais cometidas nos anos 1920 por grupos paramilitares, e também sobre o rearmamento clandestino da Alemanha.
Salazar fez vista grossa às operações nazis em Lisboa
Perseguido e condenado em tribunal, partiu para o estrangeiro em 1932. Na Suíça, foi raptado em 1935 por agentes nazis. Mas a polícia suíça empenhou-se em investigar o facto e ouviu várias testemunhas, nomeadamente em Londres. Uma dessas testemunhas apareceu depois morta e as suspeitas de que poderia ter sido assassinada por agentes nazis deram força à campanha pela libertação de Jacob.

Este foi, finalmente, libertado e sobreviveu aos maus tratos recebidos na prisão (na foto, Jacob após a libertação, convalescendo das violências que sofrera).
Kidnapped: Berthold Jacob, German-Jewish journalist and one of the first to report on early rearming by the Germans, seen here recovering after kidnapping by Nazi agents in Switzerland, 1935.

Partindo novamente para o exílio, Jacob foi para França e, com o início da guerra, veio para Portugal. Mas a Gestapo não desistia de capturá-lo e com esse fito organizou uma operação bem sucedida em Lisboa. Ao contrário do Governo suíço, o Governo de Salazar não protestou nem suscitou a abertura de qualquer processo.

Preso nos calabouços da Gestapo e torturado, Jacob acabou por morrer em 26 de Fevereiro de 1944.

Um outro rapto dos serviços secretos nazis esteve planeado em Portugal durante a Segunda Guerra Mundial, mas não chegou a realizar-se: o rapto de Eduardo, duque de Windsor, afastado da sucessão do trono britânico devido às suas simpatias pelo nazismo, mas sempre instigado por sua mulher, Wallis Simpson,  a recuperar a coroa.

Refugiado em Portugal depois da retirada do contingente britânico em Dunquerque, o duque mantinha as suas simpatias pela potência inimiga e tinha dado o seu acordo a um plano também acarinhado por Hitler. Segundo esse plano, ele seria levado para a Alemanha e, proclamando-se legítimo rei de Inglaterra, apelaria por rádio à capitulação britânica perante os bombardeamentos da Luftwaffe.

Em Portugal, o duque e sua mulher estavam instalados na Boca do Inferno, na casa do banqueiro Ricardo Espírito Santo, que também era conivente com o plano. A PVDE como tal parece ter ficado à margem da simulação de rapto, que no entanto contava com a cumplicidade de um seu inspector, o germanófilo Paulo Catela.

A operação devia ser organizada pelo chefe do serviço secreto de Himmler, Walter Schellenberg, enviado a Lisboa para o efeito. Mas o MI-5 britânico apercebeu-se dos preparativos e fez abortar o plano. Também neste caso, Salazar não fez qualquer reparo ao embaixador nazi Hoynningen-Huene.
Franco encobriu os assassinos de Delgado
O próprio Governo português viria mais tarde a organizar uma operação destinada a assassinar um opositor político, o general Humberto Delgado. Depois de ter feito uma campanha eleitoral fulminante e, provavelmente, ter ganho as eleições presidenciais de 1958, Delgado tivera de partir para o exílio.

Em 1965, a PIDE conseguiu atraí-lo a uma cilada, junto da fronteira luso-espanhola, e aí o assassinou, bem como à sua companheira, Arajarir Campos, em 13 de fevereiro. Os cadáveres, mal escondidos, foram acidentalmente descobertos dois meses depois por um pastor. 
Salazar fingiu desconhecer a operação da PIDE e, num discurso sobre a morte do general, atribuiu o crime a divergências no seio da oposição.

As autoridades franquistas, surpreendidas pelo escândalo internacional e agastadas por se verem envolvidas nele, acabaram por colaborar com a versão oficial portuguesa.

Nos anos 1960 e 1970, os serviços secretos portugueses terão organizado o assassínio de Eduardo Mondlane (Dar-es-Salam, 1969) e, mais tarde, de Amílcar Cabral (Conacri, 1973). Mas, se o atentado bombista contra Mondlane e o assassínio de Cabral nunca foram assumidos por qualquer autoridade portuguesa, já a intenção de "neutralizar" Amílcar Cabral viria a ser mais tarde confirmada por Alpoim Calvão, o responsável do ataque português a Conacri, em 22 de novembro de 1970. Este ataque, conhecido como "Operação Mar Verde", foi contudo uma operação militar secreta e não uma clássica operação de serviços secretos.
De Gaulle castigou cúmplices franceses no caso Ben Barka
No mesmo ano de 1965, os serviços secretos marroquinos assassinaram em França o líder da oposição marroquina Mehdi Ben Barka, que, a par de Amílcar Cabral, do Che Guevara e de Malcom X, se tornara um dos grandes nomes do movimento anticolonialista a nível mundial.

Ben Barka era uma figura destacada da esquerda marroquina e tivera de partir para o exílio em 1963, depois de ter apelado a que os soldados marroquinos se recusassem a combater do lado dos franceses contra os movimentos de libertação da Argélia.

Como líder que era da conferência tricontinental, Ben Barka (na foto) estava a preparar uma conferência que devia realizar-se em Havana, fundamentalmente contra o embargo norte-americano a Cuba e contra o apartheid sul-africano.

Para impedir o sucesso da conferência e as campanhas que ela pudesse lançar, houve uma colaboração entre três agentes marroquinos, vários polícias franceses e agentes da Mossad israelita. Ben Barka foi raptado em França, levado para uma vivenda da Mossad a sul de Paris e aí assassinado durante uma sessão de tortura.

O seu corpo terá sido dissolvido num tanque de ácido, sem que dele fosse, até hoje, encontrado qualquer vestígio. Na construção do tanque interveio também um agente da CIA. Uma outra versão sustenta que o corpo de Ben Barka foi enterrado em cimento, ao passo que a sua cabeça foi enviada para Marrocos.

Seja como for, o escândalo internacional levou o Governo do general De Gaulle a abrir processos contra os polícias franceses envolvidos no assassínio, sendo dois oficiais condenados em penas de prisão.  Segundo o tribunal o autor material do assassínio fora o próprio ministro marroquino do Interior, Mohamed Oufkir.

O governador civil de Paris, Maurice Papon, que sobrevivera politicamente às suas responsabilidades na deportação de judeus para Auschwitz e no masscre de manifestantes argelinos em Paris, não sobreviveu ao escândalo do assassínio de Ben Barka e teve de demitir-se.
O Comité Nobel ignorou o rapto ordenado por Shimon Peres
Na década seguinte, um dos casos mais famosos de intervenção de serviços secretos em território estrangeiro foi a operação da Mossad em Itália, para raptar o físico nuclear israelita Mordechai Vanunu.

A Mossad tinha feito operações do género muito antes, como foi notoriamente o rapto do criminoso de guerra nazi Adolf Eichmann na Argentina (levado para Israel, condenado à morte e enforcado). E havia de fazer no estrangeiro muitas outras operações, não tanto de rapto mas sobretudo de eliminação de adversários, como foram, notoriamente, as dos alegados organizadores da operação palestiniana contra a delegação olímpica israelita em Munique.

Quanto a Vanunu, este viajara para Londres e dera ao Sunday Times, em 1986, informações sobre o programa nuclear clandestino de Israel que só um insider poderia dar. A publicação das revelações de Vanunu estava em preparação e chegou ao conhecimento do Governo israelita. Shimon Peres, futuro Nobel da Paz (1994), não perdeu tempo e instruiu a Mossad para organizar o rapto de Vanunu.

A secreta israelita montou a operação com um clássico engodo feminino - uma agente que seduziu Vanunu e o convenceu a acompanhá-la até Roma. Aí, o físico foi dominado por agentes israelitas, drogado e despachado clandestinamente por via marítima para Israel. Não consta que o Governo italiano tenha tomado quaisquer medidas retaliatórias ou emitido mais do que débeis sinais de desagrado.
O Sunday Times, depreendendo da perda de contacto com Vanunu (na foto), que algo lhe teria acontecido, publicou a sensacional história revelando a existência de várias ogivas nucleares que Israel sempre negara e ainda hoje continua sem admitir abertamente.

Mas a publicação custou cara ao físico, que foi considerado um traidor e condenado a 18 anos de prisão. Cumprida a pena na sua totalidade, viria a ser libertado em 2004, mas sempre impedido de sair do país e regularmente sofrendo novas detenções por suposta violação da liberdade condicional.

A Aministia Internacional tem-no defendido como preso de consciência.O Comité Nobel que premiou o raptor nunca ponderou a atribuição do prémio ao físico que sacrificou a sua liberdade para denunciar a criação duma potência nuclear clandestina.
Mossad: técnicas precursoras do assassínio de Khashoggi
Em tempos muito mais recentes, a Mossad tentou matar o líder do Hamas, Chaled Meshal, em 1997, na capital jordana. Para isso lhe injectou um veneno, mas tão desastradamente que os dois agentes autores do atentado foram capturados e, para obter a sua libertação, Israel teve de fornecer um antídoto que salvou Meshal.

A mesma Mossad teve mais sorte numa operação conjunta com a CIA, em que matou um dos líderes militares do Hezbollah, Imad Mughniyeh, num atentado à bomba, em 2008, em Damasco. E também teve mais sorte no assassínio de Mahmoud Al-Mabhouh, um dos líderes militares do Hamas, em 2010, no seu quarto de hotel em Dubai. Esta operação teve muito mais semelhanças com o assassínio de Khashoggi, porque foi levada a cabo por um comando da Mossad, que viajou especificamente com esse objectivo.

Na subsequente investigação policial, as autoridades dos Emiratos Árabes Unidos identificaram nada menos de 26 suspeitos de ligação a esse comando e concluíram que 12 destes tinham entrado no país com passaportes falsificados de diversos países europeus e da Austrália.

As autoridades do Dubai recusaram partilhar informação sobre o inquérito com o Hamas, mas disseram ter provas da autoria da Mossad e anunciaram que pediriam um mandado de captura internacional contra Meir Dagan, na altura o chefe daquele serviço israelita, e contra o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu.

O conhecimento público da existência de passaportes falsificados criou alguns engulhos à Mossad, que aliás não reivindicou a operação: em 2010 o Reino Unido expulsou um dos diplomatas da Embaixada israelita em Londres, por envolvimento na falsificação de passaportes. A Irlanda em breve viria a fazer o mesmo.
O Caso Skripal e os seus muitos antecedentes

Os serviços secretos russos, e os seus antecedentes soviéticos, têm uma longa tradição de organizar atentados no estrangeiro. Um dos casos mais conhecidos é, naturalmente, o do dirigente revolucionário Leon Trotsky, assassinado no México em 1940, pelo agente da NKVD Ramón Mercader.

Embora o assassínio de Trotsky seja o mais notório, a verdade é que o serviço secreto estalinista se dedicou a liquidar sistematicamente os trotskistas - desde logo, os que viviam na URSS, mas também aqueles, exilados, a quem o seu "longo braço" pôde chegar em países estrangeiros.

Tal foi o caso de um dos filhos de Trotsky, Leon Sedov, assassinado em França durante durante uma operação cirúrgica simples; tal foi o caso de Rudolf Klement, um membro alemão do secretariado da 4ª Internacional; ou de Ignace Reiss, um antigo agente secreto estalinista que aderira ao trotskismo (morto na Suíça, em 1937); ou o de Robert Sheldon Harte, um guarda-costas norte-americano de Trotsky, aliciado pelo NKVD, e depois, no momento decisivo que foi a primeira tentativa de assassínio contra Trotsky, tomado de escrúpulos que lhe foram fatais.

Mas o "longo braço" da NKVD não procurava apenas os trotskistas e abatia-se também sobre todo o tipo de dissidentes: um deles foi Willi Münzenberg, uma figura fulcral da Komintern; um outro foi o general Walter Krivistky, oficial da própria NKVD, amigo de Ignace Reiss. Krivitsky entrara em contacto com Leon Sedov, em França, pouco antes do assassínio deste. Denunciou depois as diligências preparatórias do Pacto Germano Soviético e conseguiu escapar às tentativas da NKVD para liquidá-lo em França. Exilou-se nos EUA e foi encontrado morto a tiro, oficialmente por suicídio, em 1941, no quarto de um hotel em Washington D.C.

Mais recentemente, o FSB (serviço secreto russo) passou a preferir a técnica mais discreta do envenenamento, como sucedeu no caso do seu ex-agente Alexander Litvinenko.

Litvinenko tinha denunciado, logo em 1998, planos da FSB para liquidar o oligarca russo Boris Berezovsky. Julgado pela denúncia, detido, absolvido, partira para o exílio em Inglaterra, e escrevera dois livros muito desagradáveis para os responsáveis policiais e políticos, incluindo Vladimir Putin.

Tendo adoecido no início de novembro de 2006, foi-lhe diagnosticado um envenenamento por polónio, de que veio a morrer em três semanas. A investigação policial britânica considerou autor do envenenamento um outro agente do FSB, Andrey Lugovoy, e pediu a sua extradição, que nunca foi concedida. Considerou também a existência de fortes indícios de uma responsabilidade de Putin.

Curiosamente, duas outras mortes suspeitas viriam no lapso de dois anos acrescentar algum crédito à denúncia de Litvinenko: a morte, em Londres, do milionário georgiano Badri Patarkatsishvili, em fevereiro de 2008 (considerada "suspeita" pela polícia britânica, mas sem que algo fosse apurado); e, cinco anos depois, a morte do amigo deste, o mesmo Boris Berezovsky, cujo assassínio Litvinenko desde 1998 acusava o FSB de estar organizando (aparentemente por suicídio, não confirmado pela polícia britânica, que tão pouco provou assassínio).

Mais recentemente, já em 2018, registou-se o envenenamento do ex-agente do FSB Sergei Skripal, também exilado em Londres, e de sua filha. Ambos sobreviveram à doença causada pelo veneno, mas a polícia britânica disse ter provas de um atentado, levado a cabo por dois agentes russos identificados. A Rússia negou qualquer atentado e 23 diplomatas russos em Londres foram expulsos em consequência.
Serviços secretos vietnamitas atacam em Berlim

Em 2017, deu-se na capital alemã o rapto de um oligarca vietnamita, Trịnh Xuân Thanh, antigo presidente da petrolífera estatal vietnamita, que no Vietname estava a braços com investigações por crimes de colarinho e fugira para o exílio no final de 2016. O Ministério Público vietnamita emitiu então contra ele um mandado de captura internacional, mas o paradeiro de Thahn era desconhecido e não foi possível fazer diligências junto de algum país específico para que o mandado fosse executado.

As autoridades alemãs sabiam, contudo, que Thanh se encontrava em Berlim, porque tinham entre mãos o seu pedido de asilo político. Esse pedido estava a ser apreciado quando, a partir de 23 de julho do ano passado, Thanh deixou de aparecer às audições relativas ao seu processo e de dar quaisquer outros sinais de vida.

Reapareceu uma semana depois na cidade de Ho Chi Minh, com as autoridades vietnamitas a emitirem uma declaração dizendo que regressara voluntariamente e se entregara para responder em tribunal sobre as fraudes que lhe eram imputadas. Ele próprio foi depois apresentado na televisão a declarar que viera "de livre vontade". Foi julgado e, em 22 de janeiro deste ano, condenado a prisão perpétua.

Uma investigação levada a cabo em Berlim e publicada pela BBC apontou pra uma explicação diferente: Thanh aceitara em 23 de Julho, no grande parque Tiergarten, um encontro com uma funcionária da missão diplomática vietnamita e aí fora raptado por um grupo de agentes vietnamitas, que o meteram na mala de um carro. O MNE alemão caucionou esta versão, mandou expulsar um funcionário da Embaixada vietnamita e disse que iria ponderar outras medidas retaliatórias.
CIA: um capítulo por escrever, o maior

Raptos e assassínios são moeda corrente para alguns dos mais audazes e nada escrupulosos serviços secretos do mundo todo. Estranhar-se-á, com razão, não ver alguns exemplos de actividade da CIA enumerados neste breve inventário.

Poder-se-ia, desde logo, apresentar uma longa lista das tentativas de assassínio contra Fidel Castro, que durante muitos anos obrigaram o líder cubano a adoptar no seu próprio país, e estando no poder, os cuidados conspirativos de quem vive na clandestinidade, mudando de alojamento em cada noite, ou anunciando à última hora a sua agenda do dia. A verdade é que essas múltiplas tentativas, confirmadas por memórias de agentes da própria CIA, falharam todas.

Também se poderia acrescentar à lista as suspeitas de envolvimento da CIA em "acidentes" aéreos contra líderes estrangeiros, como o secretário-geral da ONU, Dag Hammarskjöld (1961), ou do presidente panamenho Omar Torrijos (1981).

Mas o papel da CIA e da NSA na teia de conspirações urdidas a nível mundial por serviços secretos que lhes estão ligados tem de ser visto com outro critério e medido com outra bitola. Uma superpotência que tem suficiente poder para contratar Bin Laden contra a URSS ou para contratar Saddam Hussein contra o Irão, e para depois liquidá-los a ambos, não pode em caso algum ser vista como mera executante e sim, necessariamente, como mandante.

E, se os EUA podem contornar a sua própria lei contratando com sócios menores a instalação de centros de tortura em territórios estrangeiros, ou o trânsito ilegal de prisioneiros em aeroportos como o das Lajes, também pode admitir-se que tenham sobre esses sócios menores um ascendente bastante forte para induzirem, para criarem oportunidades operativas, para subcontratarem operações, sem deixarem em muitas delas uma impressão digital comprometedora.


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