O testemunho de Ghappar. Como é a vida de um uigur num centro de detenção na China?

por RTP
BBC

Merdan Ghappar foi um modelo bem-sucedido na China até ser colocado num campo de "reeducação" para uigures, minoria étnica a que pertence. Em vez dos estúdios dos vídeos promocionais para marcas de roupa, o homem de 31 anos surge agora num vídeo com roupas sujas e algemado. Ghappar foi detido e levado para Xinjiang em janeiro, no início da crise do novo coronavírus, onde ficou preso em condições desumanas, ainda antes de ter chegado ao centro de detenção. Desde então, a família deixou de conseguir entrar em contacto com o ex-modelo, que está em paradeiro desconhecido.

Nos últimos anos, de acordo com vários testemunhos e denúncias, mais de um milhão de uigures - e de outras minorias étnicas - terão sido forçados a entrar em centros de detenção de Xinjiang, ainda que a China insista que estes campos são escolas “voluntárias” no combate ao extremismo islâmico.

De igual forma, têm sido divulgadas histórias de crianças separadas das famílias, ou de mulheres que foram submetidas a métodos forçados de controlo de natalidade.

No entanto, as imagens gravadas no interior destes campos de reeducação são raras. A família de Merdan Ghappar, modelo para marcas de roupa na China, disponibilizou à BBC um vídeo que mostra em primeira mão as condições insalubres e a propaganda nestes centros de detenção.

É uma visão rara da vida no interior de locais como este. Ghappar aparece num quarto pequeno e sujo, com roupas sujas. Com a mão direita e sem dizer uma palavra, o ex-modelo gravou um vídeo em que é possível ver que tem o pulso esquerdo algemado à estrutura de metal da cama.

O único som deste vídeo enviado à BBC vem de fora, para lá da janela gradeada, com altifalantes a emitirem informação propagandística sobre a história e a política de Xinjiang, região chinesa de maioria uigur.

“Xinjiang nunca foi um Turquestão Oriental. O chamado Turquestão Oriental nunca existiu ou foi reconhecido”, ouve-se de fora da janela.

A designação de “Turquestão Oriental” ou “Uiguristão” foi um termo usado pelos separatistas uigures a partir do século XX com vista à criação de um estado independente.

Na rua é possível ler faixas vermelhas que proclamam a “pureza do Partido” comunista e exortam ao “amor pela China”.

De acordo com a BBC, um documento fotografado e enviado por Ghappar convida crianças detidas a “arrependerem-se e renderem-se”.

A família do jovem modelo não recebe notícias ou mensagens há cinco meses e diz-se consciente das consequências que poderá sofrer nas mãos das autoridades chinesas, onde quer que se encontre, após a divulgação das imagens que gravou dentro do centro de detenção. No entanto, acreditam que o vídeo pode ajudar a destacar a situação atual dos uigures naquela região da China.
“Morrer aqui é a última coisa que quero”

Em 2009, Merdan Ghappar saiu de Xinjiang à procura de uma carreira bem-sucedida como modelo nas cidades mais ricas da China. Encontrou trabalho como dançarino e depois como modelo na cidade de Foshan.

Apesar do sucesso alcançado, a família conta que Ghappar foi sempre instigado a esconder a identidade uigur e a referir-se aos seus traços étnicos como “europeus”. Quando conseguiu juntar dinheiro para comprar um apartamento, Ghappar foi obrigado a registá-lo com o nome de um amigo han, o maior grupo étnico da China.

Em agosto de 2018 o jovem modelo foi condenado a 16 meses de prisão por venda de drogas, algo que os amigos garantem tratar-se de uma falsa acusação. Finalmente em liberdade, no final de 2019, Ghappar recebeu uma visita da polícia em Foshan, onde as autoridades informaram de que precisava de voltar a Xinjiang para terminar um registo de rotina.

Em janeiro, já a China vivia as primeiras semanas de crise com o novo coronavírus, Ghappar foi escoltado pela polícia num voo entre Foshan e Kucha, em Xinjiang, para “completar alguns dias de educação na comunidade local”.

Um mês depois, Ghappar conseguiu ter acesso ao telemóvel e aproveitou para contar ao mundo o que tinha vivido nessas últimas semanas desde o momento em que chegou a Xinjiang. Esteve numa prisão em Kucha, onde viu "50 a 60 pessoas detidas numa sala com menos de 50 metros quadrados".

“Todos usavam um saco preto na cabeça, algemas, manilhas para as pernas e uma corrente de ferro, que ligava umas algemas a outras”, relata numa mensagem de texto.

Sem espaço para conseguir dormir e com as algemas apertadas, a magoar os pulsos, Ghappar levantou o saco que lhe tapava a cabeça e queixou-se às autoridades. “Ele gritou ferozmente comigo e disse: Se retirares o saco novamente eu espanco-te até à morte. Depois disso, não ousei voltar a falar. Morrer aqui é a ultima coisa que quero”, contou.

Para além da violência nas “salas de interrogatório”, com o constante som de gritos, estes prisioneiros sobreviviam nas piores condições de insalubridade. Em plena pandemia, este grupo partilhava as poucas tigelas e colheres de plástico disponíveis.

As autoridades pediam a quem tivesse suspeitas de ter “doenças infeciosas” que se identificassem. “Essas pessoas seriam as últimas a comer”, revela Ghappar.

A certa altura, os prisioneiros foram obrigados a usar máscaras, ainda que tivessem de manter o saco preto sobre a cabeça e permanecessem numa cela abafada e sobrelotada.

Dias depois, alguns dos detidos foram encaminhados para um local desconhecido, identificado como “centro de controlo de epidemias”. A partir dessa altura foi colocado num quarto, o mesmo quarto onde surge algemado à cama.

Foi aqui eque Ghappar descobriu que o seu telemóvel tinha passado despercebido às autoridades, entre outros pertences pessoais. Durante alguns dias, Ghappar conseguiu contar o que se tinha passado mas, de repente, as mensagens para o mundo exterior cessaram. Desde então, a família não sabe do seu paradeiro.
Ligação ao estrangeiro
De forma a tentar verificar a veracidade destes relatos, a BBC contactou com especialistas que consideram que este é um testemunho “consistente” e que vai ao encontro de outros casos que têm sido documentados nos últimos anos.

Sobre a divulgação destas informações e as consequências para o jovem, a família diz que não tem escolha. “Ficar em silêncio também não o vai ajudar”, conta o familiar Abdulhakim Ghappar, exilado em Amesterdão.

Precisamente Abdulhakim Ghappar, tio do jovem detido, acredita que o destino do sobrinho se deve à sua própria realidade. Nos últimos anos, Abdulhakim manteve um contacto regular com o sobrinho e essa terá sido uma das razões que levou à detenção do jovem.

"Sim, estou certo disso. Ele foi detido porque eu estou no estrangeiro e porque participo em manifestações contra a violação dos Direitos Humanos na China", acrescenta.

Abdulhakim participou nos protestos contra Pequim na cidade chinesa de Urumqi em 2009 e posteriormente fugiu para a Holanda.

Ao saber que as autoridades chinesas o queriam deter, Abdulhakim conseguiu um passaporte e nunca mais voltou ao país. Agora, insiste que as ações de protesto em que tem participado, fora da China, são de caráter pacífico e que o sobrinho, apesar de manter o contacto, nunca tinha demonstrado interesse por questões políticas.

A confirmar-se, esta não seria, no entanto, a primeira vez em que uigures são detidos em massa na China como forma de chantagem e pressão sobre familiares, amigos ou conhecidos que fugiram para o estrangeiro.
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