OLÍMPICOS - CRÓNICA DE BASTIDORES "No ciclismo, ninguém vence sozinho"

por João Pedro Mendonça - RTP
RTP

Solícitos. Mais: Se o conceito de doentiamente-preocupados-em-ajudar existir, foi isso que os três habitantes da receção do hotel foram, para nos fazer chegar ao monte Fuji.

Na prova de estrada fiquei apeado. A organização, não há meias verdades, brincou com os jornalistas. Estávamos proibidos de usar transportes públicos. Apenas disponibilizaram um autocarro de 20 lugares para um mundo inteiro de repórteres. Pedimos lugares três dias antes. Ficámos em terra com um pedido - negado - de acesso à zona mista. Desta vez, para a prova de contrarrelógio, foi parecido. Negado o autocarro. Mas jurei que chegava lá. Ganhar em fuga. Chega de brincar aos Olímpicos. Há uma espécie de táxis com autorização para chegar "perto" da prova. Nem que desta vez tivessemos que escalar o monte. Vamos negociar isto. E fomos.

Sem os recepcionistas, tinha ido a pé. Incansáveis tradutores-negociadores. Meia hora ao telefone. Não desistiram em nosso nome. Conseguiram. Conseguimos!! 10 da manhã. A pontualidade exercida ao segundo.

À frente do hotel, aquilo que me parece um Datsun dos anos 90, um "charuto" negro, lavado mas baço da idade, espera de mala aberta.

Entra o material, assumimos o banco de trás. O motorista oferece-nos um semblante quase cerimonial e fechado, exibe um silêncio que nos diz, sem esboçar som, que daquela boca só sairia nihongo (língua japonesa). Bem, a primeira e única frase que nos dirigiu em quase três horas de aventura desmente e confirma:
- Fuji Internacional Speedway?
- Yes! Sim! Respondo eu em bilingue inútil. Mas a linguagem da minha cabeça em acentuado movimentos verticais é universal.

Escoaram-se os arranha-céus. Nascem portagens no caminho. Duas horas a 96 km/h por paisagens cinzentas e casas pequenas, maioritariamente cinzentas.

A seguir campos verdes, bambus de espécies diversas. Verde cerrado sob céu cinza, neste quase táxi espaçoso, irrepreensivelmente imaculado como o branco das rendas que o decoram.

A sensação de velocidade é inversamente proporcional à posição de condução do líder da deslocação. Como se estivesse num voo picado, piloto filmado em slow motion, o nosso motorista, indivíduo alto a quem uns sessenta ou setenta anos de vida de volante - eventualmente - vergaram as costas numa ligeira corcunda.

Primeiro bloqueio de estrada, quase às duas horas de viagem. Agora é que vai ser. Curiosamente, passámos. Nem deu tempo para um URRRA! No segundo mandaram-nos para um desvio. Cinco minutos, eis o terceiro bloqueio. Nessa altura já o António Antunes estava de app de mapas na ponta dos dedos:
-Estamos a 3 km e meio!

Esqueçam. Mandaram-nos dar a volta ao bilhar médio. Passou a 5. Seis e meio.
- Eh!!! Este tipo deu a volta e já está no mesmo sítio!! Estamos perdidos!!

O Antunes verbaliza a frustração, eu estou a engolir a acidez da minha.

O Sr. X também vive a dele. Coça a cabeça em estilo nervoso. "Mau. É a primeira vez que tira as mãos do volante e é para coçar a cabeça. Estamos tramados".

Mais um controlo, mas a estrada está aberta. Ele reduz para parar. Mapa virtual na não, vejo que estamos de novo a 3,5 km. Assumo o poder. Em português de língua e mão:
- Segue! SEGUE! Em frente. Segue!!

Alguma coisa funcionou ali. Senti um estremecer na aceleração. Hesitante, pausa, decidido! O som do Datsun acompanhou a escolha da ação. Vrraammm! Agora sim, a postura corporal fez todo o sentido. A mim tambem já me chamaram reporter Kamikaze. Deixá-mos o sentinela a olhar, como se fosse um pelotão surpreendido a almoçar. Chegámos. C H E G Á M O S!!

12.30! Sei lá se é esta a porta. Ficamos aqui. Pagámos, agradecemos. Já sou bom em vénias.

Controlo de entrada. Eis-nos de regresso à simpatia absoluta:
- Welcome!, diz o dono do uniforme verde, sorriso devolvido atrás da máscara. Estes militares nunca deixam um sorriso por devolver. Fantástico detalhe.

Melhor: à nossa frente, logo que entramos no recinto amplo, bancas de comida. MARAVILHOSA, até para quem tivesse tomado pequeno almoço.
-Temos vinte minutos, Antunes! Embora!

Atirei-me a uma espetada de entremeada e guiosas acabadinhas de fazer.

Até descobrir a zona mista, duas idas e vindas longas à zona norte do circuito. Mas ganhámos!! Ganhámos!!! Entrevistámos o Nelson. Conseguimos! Falta um bom tempo para o João Almeida, uma espera à torreira do sol abrasador, sombras só no pensamento: "E agora... não há autocarros, João. Começa a planear o regresso".

Nem cinco minutos, um companheiro português dá a pista dele:
- Descobri ali uns autocarros para Tóquio. Não são para o nosso lado, mas acho que me enfio num e em Tóquio logo se vê!
- Grande conceito!! Boa!

Agradeço muito, já não dependo de um nada.

Vem lá o Roglic. Graças a ele, que dobra o João, vejo no ecrã gigante que estou prestes a ter a segunda entrevista da jornada. Embrenhado neste momento, nem a vi logo.

Ela chegou suavemente ao pé de mim, lançou um sorriso de olhos grandes e um cumprimento entusiasta:
- Helloo!! How are you??

É uma companheira jornalista que conheço do fumódromo do hotel. Ela acompanhou a minha angústia do processo de vinda quando o tentava marcar:
- Conseguiste chegar! Parabéns!
- Sim!! - reajo - foi uma aventura mas está ganho!
- E agora, como fazes para voltar?

Dou dois segundos de pausa antes de responder:
-Hei-de chegar! Falaram-me de uns autocarros... - expliquei o plano emprestado pelo nosso companheiro de estória. Ela ofereceu mais um sorriso olhado:
- Esquece! Vocês são dois, não é? A minha equipa de tv tem uma Van. Vocês são nossos convidados! Considera feito!

Não consegui verbalizar logo. E garanto que não fico muitas vezes sem saber o que dizer. Lá saiu.
- OBRIGADO!!! Que posso fazer para agradecer?? Obrigado!!
Com um sorriso chegou, com um sorriso regressou ao posto dela.

Veio o João, fizemos a entrevista. Fomos ao encontro da equipa dela. Tinham terminado o trabalho há meia hora. Estavam apenas à nossa espera.

Nem vi o Monte Fuji, esse introvertido ícone nas nuvens, como o temperamento do nosso açoriano Pico.

Duas horas e meia depois, ricos de três novos amigos, fomos entregues à porta do hotel. Obrigado rápido, a fu...gir. Transferir imagens ao sprint, para o portátil. Escrever à unha num papel qualquer. Editar em modo de sobrevivência. Enganar a velocidade da Internet do hotel para terminar a tempo.

Uma hora depois, meia hora antes de exibida, chegou a Portugal a peça do Jornal da Tarde.
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