Portugal e o "Dia D". Como Salazar escapou por um triz

por RTP
Salazar, com a fotografia de Mussolini sobre a sua mesa de trabalho DR

Em Portugal, os meses que antecederam o desembarque aliado na Normandia registam o culminar das tensões entre a ditadura de Salazar e os Aliados. A Embaixada britânica considerou mesmo a possibilidade de promover um golpe de Estado em Lisboa. Salazar salvou-se por ter recuado no último instante.

Dois dos principais motivos para as tensões entre Lisboa e os Aliados ocidentais eram a utilização dos Açores e as exportações de volfrâmio. Quando se chegou ao "Dia D", a Inglaterra já estava a utilizar os Açores, sem entraves, como ponto de apoio para a aviação aliada. Mas Salazar continuava a não satisfazer a exigência aliada de um embargo às exportações de volfrâmio para a Alemanha.

E, na verdade, a solução encontrada para os Açores até viera agravar, temporariamente, a divergência entre Lisboa e Londres sobre o volfrâmio.
A obstinação em fornecer volfrâmio à Alemanha
O volfrâmio era um minério de decisiva importância para a indústria de guerra: a sua introdução nas ligas metálicas com que eram fabricadas, por exemplo, as peças de artilharia permitia aumentar a resistência dessas peças às variações de temperatura, especialmente significativas em situações de utilização continuada.

Mas, inicialmente, o volfrâmio português era pouco importante para a Alemanha nazi, que obtinha quase todas as suas importações desse minério a partir da China. Essas exportações transitavam pelo transsiberiano, através do território soviético, beneficiando do Pacto Hitler-Estaline.

A situação mudou radicalmente com a agressão alemã contra a URSS, em Junho de 1941. Cortado o seu acesso às importações chinesas, a Alemanha nazi voltou-se para os dois países com as maiores reservas da Europa: a Espanha e, principalmente, Portugal.

Embora a maior parte das exportações portuguesas de volfrâmio se destinassem à Inglaterra, e embora fosse inglesa a maior empresa de extracção desse minério em Portugal - a Beralt Tin -, a verdade é que desde cedo foi a Inglaterra quem começou a reclamar um embargo total às exportações portuguesas e foi a Alemanha nazi quem lutou tenazmente pela liberdade de exportação.

A assimetria dos comportamentos explicava-se pela assimetria das situações: durante todo o conflito, a Inglaterra teve sempre mais alternativas de fornecimento do que a Alemanha. Primeiro, importava da Birmânia, até esta cair na mão dos japoneses; depois, obtinha uma parte dos seus fornecimentos na Cornualha e uma outra na América Latina.

Se a economia de guerra inglesa manteve quase até ao fim uma pressão para comprar tudo o que pudesse no mercado português, isso não se devia tanto a necessitar do volfrâmio português, e sim ao propósito de absorver o máximo de produção para que ela não pudesse ser comprada pelos alemães.

Enquanto não conseguisse obter de Portugal um embargo total às exportações de volfrâmio, a Inglaterra ia fazendo as chamadas "compras preemptivas", para rarefazer a oferta e, além disso, para aumentar os preços (a Alemanha também tinha mais dificuldade em pagar).
A cedência dos Açores aos Aliados
Paralelamente, os Aliados reclamavam a cedência de facilidades para criarem nos Açores um ponto de apoio para a sua aviação e Salazar recusava-lhas, argumentando com a violação que isso representaria para a neutralidade portuguesa e com o risco de uma correspondente declaração de guerra por parte da Alemanha.

Em 1943, com a derrota alemã em Estalinegrado e com a viragem já consumada no rumo da guerra, os Aliados decidiram tomar as medidas que fossem necessárias para poderem dispor dos Açores, invadindo mesmo o arquipélago se fosse o caso. Disso deram sinal a Salazar, que se apressou a conceder-lhes, em agosto de 1943, as facilidades pretendidas, para que elas não fossem tomadas unilateralmente, manu militari.

Será matéria de discussão, a de saber se Salazar argumentava com o risco de uma declaração de guerra alemã por sinceramente a recear, ou como mera astúcia retórica para contrariar a pressão aliada. O facto é que os alemães já não podiam nessa fase da guerra abrir uma nova frente e, longe de emitirem a tal declaração de guerra, apenas deixaram em acta um protesto pelo facto.

Na reunião em que o representante alemão Oswald von Hoyningen-Huene, apresentou esse protesto, o lugar-tenente de Salazar no MNE, Luís Teixeira de Sampaio, não se limitou a receber a nota de protesto, mas, pelo contrário, sugeriu aos alemães que procurassem fazer-se compensar nas negociações sobre o volfrâmio pela violação de neutralidade portuguesa que acabavam de questionar. E uma tal sugestão de Teixeira de Sampaio só era possível com luz verde vinda de cima.
A cedência do embargo aos Aliados
Não restam portanto quaisquer dúvidas sobre a estratégia de obstrução que Salazar opôs às exigências aliadas de embargo. Do lado português, argumentou-se regularmente com o medo de um avanço do Exército Vermelho, que justificaria um apoio ao esforço de guerra nazi. Os aliados, cada vez mais impacientes, iam contraargumentando que os canhões alemães fabricados com volfrâmio português também serviam para matar soldados ingleses e americanos.

Mas, para além de argumentos e contraargumentos, os aliados preparavam-se neste caso, como também tinham feito no caso dos Açores, para tomar uma iniciativa unilateral. E iniciaram os contactos com militares e políticos do Estado Novo, incluindo o presidente da República, marechal Carmona, no sentido de prepararem uma alternativa a Salazar, por via putschista.

Mais uma vez, o astuto ditador intuiu o perigo iminente, e mais uma vez tomou uma decisão dramática: decretar o embargo de todas as exportações de volfrâmio. Fê-lo em vésperas do "Dia D" - essa operação militar anunciada e várias vezes adiada, que teve lugar há precisamente 75 anos. Por um triz, Salazar salvava-se de um golpe de Estado apoiado pela Inglaterra e acautelava a sobrevivência do regime por mais três décadas.
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