Pouco popular e inseguro. Bolsonaro pode estar a preparar a sua própria "rebelião"

por Inês Moreira Santos - RTP
Joedson Alves - EPA

As atenções têm estado viradas para o Governo brasileiro desde que, na segunda-feira, três ministros se demitiram e Jair Bolsonaro anunciou uma reforma ministerial. A classe política brasileira parece estar preocupada com estas mudanças e há já quem considere que o presidente do Brasil está a preparar não um golpe de Estado, mas uma rebelião semelhante à de janeiro no Capitólio dos Estados Unidos, caso seja destituído ou de alguma forma afastado do cargo.

Depois de o ministro das Relações Exteriores do Brasil, Ernesto Araújo, ter pedido a demissão após forte pressão de políticos ligados ao presidente, seguiram-se mais duas baixas no Executivo de Bolsonaro: o ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, e o advogado-geral da União Brasileira, José Levi. Horas depois, Jair Bolsonaro deu início a uma reforma ministerial, alterarando a titularidade das pastas da Justiça, Casa Civil, Defesa, Relações Exteriores, Secretaria de Governo e Advocacia-Geral da União.

Mas, mais do que uma remodelação, parece estarmos quase perante um novo governo. Um ano antes das eleições presidenciais brasileiras, o chefe de Estado fez alterações profundas em seis ministérios do Executivo - o que revela, segundo os analistas, que Jair Bolsonaro está preocupado com a queda da sua popularidade.

Estas mudanças em menos de 24 horas surgem numa altura em que Bolsonaro é duramente criticado pela forma como está a gerir a pandemia e estão a preocupar a classe política brasileira.

Os comandantes das três forças militares do Brasil, Exército, Marinha e Aeronáutica anunciaram, na terça-feira, também a sua demissão numa forma de protesto contra a demissão do ministro da Defesa. De acordo com a imprensa brasileira, a troca de comando no Ministério da Defesa aconteceu porque Bolsonaro pretendia dos militares gestos políticos favoráveis a interesses do governo, como por exemplo um apoio à ideia de decretar "estado de defesa" para impedir confinamentos pelo país na pandemia da Covid-19.

Segundo o jornal brasileiro Valor Económico, um dos supostos objetivos do presidente ao trocar o titular do Ministério da Defesa foi garantir um novo perfil de comando disposto a dar demonstrações de alinhamento - o que coincide com as preocupações expressadas por vários partidos e figuras políticas do Brasil, que classificaram este movimento de "perigoso" e "inquietante para o país".

"As recentes mudanças no Ministério da Defesa e nos comandos das três forças inquietam o país. Precisamos do máximo de responsabilidade de todas as autoridades públicas. A democracia é um valor inegociável. É essencial para a democracia que as Forças Armadas atuem sempre com independência e estejam a serviço do Estado brasileiro, jamais a serviço dos interesses de quem quer que seja", escreveu na rede social Twitter o presidente do partido Democratas (centro-direita), António Carlos Magalhães Neto.

Já a deputada do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL, esquerda) Talíria Petrone considerou que o atual governo brasileiro quer que as Forças Armadas "lambam as botas do presidente", algo que classificou de "deplorável e muito perigoso".

"Pela primeira vez desde a redemocratização, um presidente troca o comando das três Forças Armadas. (...) Não podemos nos perder nesse caos que Bolsonaro busca criar para pavimentar seu caminho contra Constituição e na direção do fascismo. O impeachment [destituição] de Bolsonaro segue sendo o melhor remédio, tanto para a pandemia quanto para salvar nossa frágil e incompleta democracia", avaliou Talíria Petrone.

Os verdadeiros propósitos desta reforma ministerial com a acomodação de aliados de Bolsonaro está a gerar debate entre os analistas e políticos. Se para uns o resultado das mudanças nos seis ministérios e nos comandos das forças militares é ainda incerto e não garante mais segurança ao presidente, para outros Jair Bolsonaro está a preparar o seu "próprio 6 de janeiro" garantindo que tem aliados e apoio militar.
Bolsonaro segue exemplo norte-americano de insurreição?

"Houve uma acomodação do centrão [bloco informal que reúne parlamentares de partidos de centro e centro-direita] dentro do governo, mas ficou claro que o presidente Bolsonaro também movimentou ministros, movimentou o primeiro escalão para manter nos postos chaves aqueles que lhe são fiéis", comentou à Lusa Rodrigo Prando, sociólogo e professor da Universidade Mackenzie.

Segundo Prando, estas mudanças não podem ser entendidas simplesmente como um rearranjo de forças normal dentro do governo, já que o presidente do Brasil, que tem sido muito criticado pela condução da pandemia, por promover constantes atritos com adversários políticos e pela volta do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao cenário eleitoral, estaria "reagindo a um conjunto de fatores que o pressionam".

Apesar de considerar que o governo brasileiro tem respondido e agido "mal" e de "maneira tardia", Bolsonaro "quer, na verdade, não perder o poder que ainda tem, mas o presidente hoje é um presidente acuado em todos os sentidos".

Na mesma linha, o ex-ministro da Defesa e ex-ministro das Relações Exteriores do Brasil nos governos do Partido dos Trabalhadores (PT, esquerda), Celso Amorim, considera que a saída do general Fernando Azevedo e Silva da Defesa e de Edson Leal Pujol do comando do Exército mostra o interesse de Jair Bolsonaro em ter a instituição "na mão".

"A saída já concretizada do general Fernando Azevedo, que pode estar ligada a uma saída quase certa de general Pujol, mostra um propósito muito determinado de ter um Exército na mão. Não talvez para dar um golpe, mas talvez para não impedir ações", afirmou Amorim, numa entrevista ao Fórum Onze e Meia.

"Tipo uma invasão do Congresso pela milícia, tipo Capitólio. O próprio presidente Bolsonaro disse que isso poderia acontecer aqui. (...) Os golpes hoje em dia são um pouco diferentes", completou o também diplomata, que prevê uma possível "agitação das milícias e das polícias".

Já o analista norte-americano Brian Winter, editor-chefe da revista Americas Quarterly, considera que Jair Bolsonaro está a preparar o seu próprio "6 de janeiro", referência à invasão do Capitólio por manifestantes apoiantes de Donald Trump.

Numa análise às reviravoltas políticas no Brasil esta semana, Winter começa por relembrar que o presidente brasileiro foi dos raros chefes de Estado que não condenou invasão do Capitólio e que disse, na altura, que este cenário se podia repetir também no Brasil. Recorde-se também que o filho do presidente brasileiro, Eduardo Bolsonaro, esteve na Casa Branca, em Washington, no dia anterior à invasão do Capitólio, tendo reunido com Ivanka Trump e outros líderes do movimento conservador global.

Em janeiro, reagindo à insurreição dos apoiantes de Trump, Eduardo Bolsonaro criticou mesmo a "incompetência" e "desorganização" dos manifestantes.

"Foi um movimento desorganizado. Foi lamentável", disse na altura ao jornal Estadão. "Se fosse organizado, teriam conseguido invadir o Capitólio e feito reivindicações que já estariam previamente estabelecidas pelo grupo invasor. Teriam um poder bélico mínimo para não morrer ninguém [do grupo de manifestantes], matar todos os policias lá dentro ou os congressistas que tanto odeiam. No dia em que a direita for dez por cento da esquerda, vamos ter guerra civil em todos os países do Ocidente".

Nesse sentido, o analista norte-americano considera que a "dramática remodelação dos ministérios do presidente Jair Bolsonaro na segunda-feira parece propositada a evitar um destino semelhante - se se organizar agora e pode evitar ser "ilegitimamente" afastado do cargo mais tarde".

"Embora isso possa parecer para alguns uma teoria de conspiração, é uma reação lógica aos acontecimentos recentes no Brasil, incluindo o pior numero de mortes por covid-19 no mundo, uma renovada ameaça de impeachment pelo Congresso, e a emergência inesperada do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o pesadelo ambulante da direita brasileira, como forte oposição nas eleições de 2022".

Segundo Brian Winter, Bolsonaro está "sob pressão" e pretende assegurar que tem os seus "aliados mais próximos e, especialmente, garantir que tem o apoio de que precisa dos militares brasileiros".

"O outrora ‘Trump Tropical’ está determinado a evitar o que percebeu com os erros do seu ídolo", acrescenta Winter.

Para o analista, não está claro se o esforço de Bolsonaro vai funcionar ou lhe "vai sair pela culatra". Não se sabe se os novos comandantes das Forças Armadas serão mais leais ao presidente ou se o vão deixar mais fraco.

Mas o "plano B" de Bolsonaro, na ótica de Winter, "é claramente ter o maior número possível de militares ao seu lado para um possível impeachment ou um resultado adverso na eleição de 2022". Afinal, "as saudades da ditadura e o ódio à esquerda ‘comunista’ foram as únicas linhas consistentes na carreira política de mais de 30 anos de Bolsonaro".

De facto, nas últimas semanas, Jair Bolsonaro já alertou para uma possível fraude nas eleições presidenciais do próximo ano, referiu-se ao Exército brasileiro como "meu", aprovou decretos que permitem a posse de armas aos cidadãos e ainda afirmou a um grupo de militares que se dependesse dele o Brasil viveria um sistema político diferente, presumivelmente autoritário.
Aliados de Bolsonaro tentam expandir poderes do presidente
Aliados de Jair Bolsonaro tentaram na terça-feira, sem sucesso, promover uma proposta na Câmara dos Deputados para ampliar os poderes do chefe de Estado e que foi interpretada pela oposição como uma tentativa de "golpe".

O líder do governo na Câmara dos Deputados, Vítor Hugo Almeida, reuniu-se com representantes de outros partidos para tentar levar ao plenário a iniciativa de Projeto de Lei que acionaria a chamada "Mobilização Nacional", mecanismo previsto na Constituição para casos de ameaça estrangeira.

Segundo Almeida, major da reserva do Exército e filiado no Partido Social Liberal (PSL), a atual crise de saúde que o país atravessa enquadra-se nas condições desse mecanismo. O estatuto de "Mobilização Nacional" habilita o presidente a intervir na produção pública e privada, a solicitar e ocupar bens ou serviços e a convocar civis e militares para ações promovidas pelo Governo.

A iniciativa, segundo a imprensa local, contempla também o controlo geográfico do executivo para ações de combate à pandemia do novo coronavírus, atribuições que foram conferidas no ano passado aos governadores e prefeitos pelo Supremo Tribunal Federal, excluindo Bolsonaro dessa prerrogativa.

No entanto, a proposta não avançou entre os líderes dos partidos aliados do governo na Câmara dos Deputados, mas a oposição expressou o seu desagrado.

"Essa escalada autoritária, que tenta mobilizar os militares para os interesses do presidente, não pode ser tolerada num Estado democrático. Os brasileiros não querem outro golpe", disse o deputado José Guimarães, do Partido dos Trabalhadores (PT, esquerda).

As vozes críticas também vieram da direita e o deputado Kim Kataguiri, do Partido Democratas e ex-aliado de Bolsonaro, classificou a iniciativa como uma tentativa de "golpe" e destacou que, com esse poder, o presidente estaria no controlo da polícia e dos militares.

O autor da proposta, por sua vez, descartou que se tratasse de um "golpe" e, numa intervenção na Comissão de Constituição e Justiça do Congresso, argumentou que estava em causa uma espécie de "proteção" face à calamidade sanitária para poder alcançar mais vacinas e ações na pandemia. Segundo Almeida, esse mecanismo "é diferente do Estado de Sítio ou do Estado de Defesa" e tem como objetivo "reunir as forças" para combater a pandemia.
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