Procuradoria mexicana comprova envolvimento de polícias no massacre de 17 emigrantes

por Graça Andrade Ramos - RTP
Dez dos 12 polícias acusados do massacre de 19 pessoas no México em 22 de janeiro de 2021. Procuradoria do Estado de Tamaupilas, México

Sete meses depois do massacre de 19 pessoas, na maioria emigrantes, no norte do México levanta-se um pouco do véu de mistério sobre o que realmente sucedeu no dia 22 de janeiro de 2021 no Estado de Tamaulipas, alguns quilómetros a sul da fronteira norte-americana.

Jornalistas da VICE World News, uma divisão da revista americana-canadiana Vice, especializada no jornalismo de investigação, conseguiram contornar o segredo de justiça e acederam às gravações das audiências prévias do julgamento dos 12 polícias estaduais entretanto detidos e acusados do crime.

Os procuradores revelam uma cena tenebrosa, com os emigrantes e dois traficantes a tentarem fugir desesperadamente dos polícias, que dispararam mais de 300 tiros e que depois procuraram ocultar as provas através do fogo. O massacre de Camargo envolveu o maior número de vítimas num só crime em mais de cinco anos. Os detalhes do caso são chocantes, mesmo para um país como o México, onde assassínios, execuções e desaparecimentos são tão comuns que merecem uma lista na Wikipedia.

A região de Tamaulipas é palco habitual de confronto entre grupos de narcotráfico e do crime organizado, com especial incidência do cartel do Golfo e do cartel Zeta, que lutam também pelo controlo das rotas de tráfico humano e que extorquem aos passadores e emigrantes o pagamento de direitos de passagem segura.

Estima-se que mais de 35.000 emigrantes tenham desaparecido no México nos últimos anos, vítimas de grupos armados.

Muitas vezes as forças de segurança são infiltradas ou colocam-se ao serviço destes senhores do crime e controlam as investigações.
Primeiros alarmes
Naquele dia 22 de janeiro as forças de segurança mexicanas tinham montado um dispositivo apertado para intercetar migrantes. Registos telefónicos de duas das vítimas revelaram um jogo do gato e do rato e foram referidos pelos procuradores para sustentar as acusações aos agentes e apresentar uma fita do tempo.

Uma jovem guatemalteca enviou uma mensagem de texto ao pai na manhã do massacre a dizer que o grupo tinha abandonado a autoestrada porque havia polícia por todo o lado e estavam à espera que o rumo ficasse desimpedido.

Um coyote mexicano, como são conhecidos os traficantes de pessoas na região, contratado pelos guatemaltecos para os levar para os Estados Unidos, contactou também a sua família. Falou às oito da manhã a um primo e disse que o grupo estava perto da fronteira norte-americana e que a situação estava “escaldante e má devido à presença de muita polícia”.

Mais tarde contactou a mulher, entre as 10h00 e as 11h00 da manhã, revelaram os procuradores. “Disse-lhe que a polícia estava a disparar contra eles”. Foi a última vez que falaram e a última chamada registada do telemóvel do coyote.
Doze polícias estaduais acusados
Um telefonema anónimo alertou depois no mesmo dia as autoridades do Estado de Tamaulipas para a presença de dois veículos queimados numa estrada secundária do município de Camargo.

Dentro deles estavam restos humanos de 19 pessoas, de tal forma calcinados que a análise preliminar apenas permitiu determinar pertencerem a 16 indivíduos do sexo masculino e um do feminino. Os restantes dois eram indeterminados.

Apesar de todos os corpos terem sido baleados e de um dos veículos apresentar 113 buracos de bala, não foram encontrados no local quaisquer cartuchos.

A dois de fevereiro, 12 agentes da polícia estadual foram detidos e acusados de homicídio, de abuso de autoridade e de falsas declarações. Oito deles pertenciam ao Corpo de Operações Especiais da polícia, o GOPES, que reporta diretamente ao Governador do Estado de Tamaulipas, ele próprio suspeito de ligações ao crime organizado.

Inicialmente os polícias disseram que tinham encontrado a cena do crime após o massacre, só que mentiram descaradamente, afirmaram os procuradores ao juiz. Para sustentar a tese apresentaram uma série de provas e de testemunhos oculares, além dos registos telefónicos.

Primeiro, afirmaram os procuradores, os instrumentos de localização geográfica identificaram os veículos dos agentes no local do massacre no intervalo de tempo em que se calcula que este ocorreu. Dados dos telemóveis dos polícias também apontaram a presença física dos mesmos na área.

Perícias balísticas indicaram que as armas deles foram disparadas e a ausência dos cartuchos foi interpretada como uma tentativa de ocultar o sucedido, revela a VICE World News.
Polícias vistos a "perseguir" e a "disparar"
E houve testemunhas, que não estiveram presentes em tribunal por questões de segurança, mas cujos relatos coincidem.

“Os polícias foram vistos a perseguir os civis em carros blindados”, afirmou ao juiz um dos procuradores do Estado de Tamaulipas, de acordo com os repórteres que acederam às gravações das audiências prévias.

As testemunhas “também os viram a disparar as suas armas. Depois viram as duas carrinhas de caixa-aberta em chamas, ouviram duas explosões e fumo a subir através da vegetação. E não foi só uma testemunha que assistiu, nem duas, mas três”.

Durante um interrogatório de mais de 20 minutos, uma das testemunhas afirmou ter visto tiros disparados de “quatro grandes camiões azuis” [carros armados da polícia] “todos com uma pessoa no topo, encapuçada e vestida de negro”, enquanto perseguiam as carrinhas que transportavam os emigrantes.

Outra testemunha afirmou que, depois de ter visto as explosões, uma mulher baixa e corpulenta vestida com roupas escuras lhe apareceu à porta a perguntar se alguém se tinha refugiado na casa. A testemunha disse ter respondido que não, tendo-se depois escondido na habitação. A descrição dada da mulher corresponde à da acusada Mayra Elizabeth Vásquez Santillana, a comandante da polícia regional, referiram os procuradores.

A VICE World News afirmou que não lhe foi possível contactar as testemunhas para confirmar esta versão do sucedido.
O fim do sonho americano
Todas as vítimas sofreram queimaduras de quarto grau, algumas em 100 por cento do corpo, de acordo com os relatórios de autópsia apresentados pelos procuradores. Os relatórios admitem a possibilidade das vítimas terem morrido em resultado das queimaduras e não por ferimento de bala. A identificação de todos demorou semanas e obrigou a análises de ADN comparativas com familiares. Soube-se depois que pertenciam a 17 emigrantes da Guatemala e a dois mexicanos, provavelmente os guardas ou coyotes que habitualmente acompanham os grupos.

A maioria das vítimas eram adolescentes ou tinham pouco mais de 20 anos, sendo oriundos de aldeias indígenas das montanhas ocidentais da Guatemala.

Um cidadão guatemalteco, integrado num grupo de 30 pessoas que se deslocou ao México para comprovar que as vítimas eram seus familiares, referiu aos jornais estar certo que uma das vítimas era um sobrinho seu de 31 anos.

“Era a primeira vez que tentava ir para os Estados Unidos, queria melhorar a sua vida e a da sua família, deixa mulher e dois filhos”, referiu Ramiro Coronado.

Outro dos mortos, Edgar López, tinha sido detido e deportado em 2019 após ter vivido 22 anos no Mississipi, Estados Unidos. Estava a tentar regressar para junto da família.

Nem todos viajavam sozinhos e familiares seus, com quem tinham seguido viagem no dia anterior, escaparam por pouco ao massacre.

Cinco pessoas, incluindo crianças, entraram nos Estados Unidos nos dias seguintes, revelaram fontes norte-americanas. Na manhã do ataque, os sobreviventes deixaram a casa onde tinham todos passado a noite, em veículos diferentes seguindo outro caminho. Nenhum terá assistido ao tiroteio.

Famílias nos EUA afirmaram ainda que souberam das mortes por um traficante que as alertou depois de ter sobrevivido. Foram estas que lançaram o alarme para o que poderia ter, de outra forma, caído no esquecimento ou no buraco sem fundo dos "desaparecidos".
EUA distanciam-se
No Congresso norte-americano, a preocupação com o massacre centra-se nas ligações dos Estados Unidos ao grupo de forças especiais a que pertencem os polícias acusados. O GOPES, Grupo de Operações Especiais, tem 150 elementos, parte dos quais foram treinados por forças norte-americanas.

O GOPES é por muitos, incluindo os EUA, considerado uma nova designação do extinto Centro para Análise, Informação e Estudo de Tamaulipas, o CAIET, uma força policial de reação rápida, envolvida há vários anos em suspeitas de raptos, desaparecimentos, execuções e tortura. Em 2019 os tribunais concluíram que membros do CAIET tinham estado diretamente envolvidos no massacre de Nuevo Laredo, em que oito pessoas foram arrastadas de casa, vestidas com coletes à prova de bala com as iniciais do Cartel do Noroeste e executadas a sangue frio.

O GOPES herdou muitos dos elementos do CAIET. Uma das assinaturas de marca destes grupos é o facto de ambos operarem em carros blindados e com máscaras.

A reputação de ambas as formações é de tal forma aterradora que o Governo norte-americano está a tentar distanciar-se delas, depois de ter investido na sua formação inicial.

A embaixada dos Estados Unidos no México emitiu um comunicado a referir que três dos agentes acusados no massacre de Camargo “receberam treino básico ou de supervisão inicial” decretada pelo Departamento de Estado.

O treino destes indivíduos ocorreu em 2016 e 2017 e seguiu todas as regras exigidas pela legislação Leahy”, que impede qualquer agência norte-americana de assistir forças de segurança externas suspeitas de violar os direitos humanos, referiu o comunicado.
E o tráfico de armas?
Vários grupos ativistas têm contudo denunciado a vista grossa de Washington ao tráfico de armas constante entre os Estados Unidos e os grupos armados mexicanos. Mesmo o armamento oficialmente vendido às Forças Armadas do país vizinho acaba transferido para grupos como o GOPES, referem, sendo fácil acabar desviado pelos gangues. Calcula-se que 70 por cento das armas ilegais recuperadas no México sejam produzidas ou vendidas no mercado de armas norte-americano e mais de dois terços dos emigrantes afirmam ter sido vítimas de violência no México.

Em março de 2020 o Presidente Donald Trump transferiu a vigilância da venda de armas do Departamento de Estado para o Departamento de Comércio, referiu em abril deste ano um artigo da NACLA, uma revista política do Congresso Norte Americano para a América Latina.

Depois disso, as exportações de armas semiautomáticas, especialmente as produzidas pela Sig Saue semelhantes às empunhadas por membros do GOPES em fotografias, subiram em flecha.

Joe Biden também não arrepiou caminho, critica a revista. No mesmo dia em que os polícias foram presos pelo massacre em Camargo, o Presidente dos EUA assinou uma ordem executiva para serem investigadas as raízes da migração da América Central para os Estados Unidos. A ordem previa ações para prevenir “violência, extorsão e outros crimes perpetrados por organizações criminosas”.

Na sua ordem executiva, refere a NACLA, Joe Biden nem sequer mencionou este fluxo comercial direto entre as cidades de ambos os lados da fronteira. Incluindo a cidade de Camargo.
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