“Muitas vezes, tivemos de deixar de comprar comida para comprar
medicação para a menina. É assim que fazemos na Venezuela: cortar na
alimentação para conseguir comprar alguns medicamentos”. Esta é a avó de
María Cañizalis, uma menina de quatro anos com asma e vários problemas
de saúde frequentes, sobretudo febres e convulsões. À Human Rights
Watch, a avó fala sob anonimato, com medo de futuras represálias, e
conta que a pequena María recebeu tratamentos incompletos de
antibióticos, muitas vezes tomando apenas durante dois dias numa
sequência de sete, devido à escassez de medicação disponível. Os
tratamentos inacabados levaram a várias recaídas e outras complicações. A agência Reuters dedicou-se ao tema da crise venezuelana em vários ensaios fotográficos sobre os frigoríficos vazios dos venezuelanos e a celeuma do abandono de animais.
Este é um dos muitos casos registados pela organização de Direitos Humanos, que divulga este mês um extenso relatório sobre a situação
caótica que se vive no país sul-americano. O documento, conhecido esta
segunda-feira, evidencia vários casos de escassez de alimentação e
medicamentos, bem como o que designa como “a atuação inadequada e
repressiva do Governo”.
Nos últimos meses, a escassez de alimentos e de outros produtos básicos
tem sido amplamente noticiada pelos media, com destaque para as longas
filas à porta dos supermercados.
A recente descida nos preços do petróleo e a forte desvalorização do
bolívar, a moeda venezuelana, aliada à má gestão e às políticas
económicas seguidas pelo Governo, levaram Caracas a uma situação de
grande instabilidade política, social e humanitária. A oposição política
usa estes e outros argumentos para exigir um referendo que retire
Nicolás Maduro do poder.
Para além de detalhar o cenário de crise alimentar que se faz sentir no
país, o relatório vai mais longe e explora o impacto da escassez de
medicamentos e tratamento médico, dentro e fora dos hospitais.
Os pacientes de um hospital de Valencia, em Caraboro, compartilham o último tanque de oxigénio disponível.
A desvalorização da moeda é enorme. Segundo o economista José Manuel Puente, em declarações ao jornal The Guardian,
o custo de impressão de cada nota é, em média, 20 por cento superior ao
seu valor real. Ou seja, as notas “não valem o que custaram”, explica o
perito. A Human Rights Watch recorre mesmo a vários dados, incluindo documentos
internos do Ministério da Saúde, que sugerem o incremento anormal das
taxas de mortalidade materna e infantil, uma tendência anormal tendo em
conta a análise de toda a região da América Latina a que a organização
se dedicou.
Na passada semana, o jornal norte-americano The Wall Street Journal
recorreu a dados oficiais do próprio Governo venezuelano para mostrar
que a mortalidade infantil (no primeiro ano de vida de um nado-vivo) é
de 18,6 em 1000 nascimentos, um valor superior ao registado num país em
guerra civil como a Síria, por exemplo.
Cenário geral de censura
Em agosto, o secretário-geral das Nações Unidas, Ban Ki-moon, reconhecia
que a situação na Venezuela era de “crise humanitária”. Também o alto comissário da ONU para os Direitos Humanos, o príncipe Zeid Ra’ad
Al Hussein, dizia em setembro deste ano que a Venezuela tem sofrido “um
declínio dramático no usufruto dos direitos sociais e económicos, com a
fome cada vez mais generalizada e a forte deterioração de cuidados de
saúde”.
O Governo continua a negar a existência de uma crise real. O ministro
venezuelano dos Negócios Estrangeiros disse em junho de 2016: “Não há
nenhuma crise na Venezuela. Não existe. Digo isto com toda a
responsabilidade: não existe nenhuma crise”.
Ao contrário do que costuma acontecer noutras missões da HRW, a
organização nota que não procurou o contraditório, evitando contactar responsáveis do Governo venezuelano por temer possíveis represálias. Isto
tendo em conta episódios recentes, em que o Governo deteve e expulsou
representantes da HRW em 2008 e declarou que a presença da organização
não seria “tolerada” no futuro.As missões da Human Rights Watch incluíram visitas a
Caracas, capital do país, bem como visitas a cidades em seis diferentes
estados, nomeadamente Maracay (em Aragua), Valencia (em Carabobo),
Barquisimeto (Lara), San Cristóbal e Capacho (Táchira), Betijoque,
Valera e Trujillo (em Trujillo) e Maracaibo (em Zulia).
Ainda assim, a Human Rights Watch esclarece que procurou confrontar o
Executivo de Nicolás Maduro com alguns dados, enviando uma carta ao
ministro dos Negócios Estrangeiros, Delcy Rodriguez, não obtendo no
entanto qualquer resposta.
Luisana Melo, ministra da Saúde, fez declarações concordantes com a
posição do Governo: “Em geral, o povo venezuelano tem acesso garantido
para tratar todas as suas doenças”.
Por outro lado, quando os responsáveis venezuelanos chegam ao ponto de
reconhecer dificuldades económicas e sociais, investem sobretudo numa
narrativa de “guerra económica”, travada entre o Governo e a oposição
política, o setor privado e o poder de outras nações. Quem ouse criticar
ou protestar contra o Governo venezuelano corre o risco de perseguições, espancamentos e detenção.
Diz o relatório que os detidos são julgados muitas vezes em tribunais
militares, fora do que é previsto pela lei, que obriga a um julgamento
justo. Noutros casos, vários médicos e enfermeiros de hospitais públicos
são convidados a manter o silêncio sobre a enorme escassez de
recursos nas instalações onde trabalham.
A Human Rights Watch apresenta
alguns casos de médicos que foram mesmo detidos ou ameaçados de
despedimento em caso de vociferarem críticas ao Governo ou concederem quaisquer declarações à comunicação social sobre as dificuldades que
enfrentam no dia-a-dia. O relatório omite ou altera o nome de algumas
testemunhas por motivos de segurança para os entrevistados.
Situação caótica nos hospitais
Nos vários hospitais e instituições de saúde visitados pela HRW, com
entrevistas a profissionais e pacientes, regista-se a escassez das
ferramentas mais básicas. A falta de equipamento médico e material
sanitário é mais notória nos últimos dois anos e, segundo a organização
humanitária, impossibilita os médicos de prestarem os cuidados de saúde
adequados.
O relatório divulgado esta segunda-feira faz a listagem dos materiais
que escasseiam nos maiores hospitais do país: desde medicamentos
essenciais de primeira linha como antibióticos, anticonvulsivos,
relaxantes musculares, sedativos e analgésicos, vacinas contra a raiva
ou a varicela, até ao próprio material cirúrgico, como bisturis,
cateteres, luvas ou máscaras próprias. Muitas vezes são os próprios médicos e cirurgiões que adquirem e
transportam os materiais de operação, perante a falta de recursos nos
hospitais.
Segundo os médicos ouvidos pela organização, a ausência de medicação ou
material próprio impossibilita tratamentos completos e já resultou, por
exemplo, em infeções pós-operatórias, o que terá levado, segundo os
profissionais, à morte de vários pacientes.
Esta situação alarga-se também aos bebés e ao acompanhamento dos partos,
o que se traduz no aumento exponencial das taxas de mortalidade infantil e
materna, bem como em casos de subnutrição.
Uma capa infantil de oxigénio improvisada numa unidade de cuidados em San Cristobal.
“Existe mortalidade neonatal devido à ausência de cuidados pré-natais,
mas também devido à falta de higiene básica no
hospital, ou devido à sobrelotação. É comum encontrar dois ou três bebés
no mesmo berço, dois ou três bebés na mesma incubadora”, conta um
médico, falando especificamente na situação de risco dos prematuros.
Noutros casos, os bebés são embalados em caixas de cartão. Em setembro,
várias fotografias colocadas nas redes sociais causaram indignação na própria sociedade venezuelana.
Mas não só nos hospitais os pacientes encontram barreiras. O relatório
conta a situação difícil, por vezes desesperante, para vários pacientes e
famílias, que tentam encontrar medicamentos para o tratamento de
doenças crónicas ou para obter tratamento considerado urgente.
É o caso de um doente com cancro na cidade de Maracay, que teve de
comprar todos os medicamentos necessários ao acompanhamento de uma
operação. A mulher conta que tem sido a família, através das redes
sociais, a conseguir encontrar e comprar toda a medicação necessária
desde então. O relatório conta também outros casos de doentes com cancro
que não conseguem pagar os custos enormes dos medicamentos no exterior
ou no mercado negro e se organizam em eventos de angariação de fundos.
“A angústia e a incerteza são um pesadelo diário”, conta a mãe de uma
menina diabética de 9 anos, cujos pais encontram grandes dificuldades em
localizar e comprar insulina. Outros casos são mencionados pela Human
Rights Watch em que os doentes são levados ao desespero de tomar
medicação fora do prazo.
Escassez de alimentos
As filas dos supermercados são a face mais conhecida desta crise
humanitária e atingem as camadas mais pobres da sociedade venezuelana,
que não consegue comprar alimentação e outros bens essenciais fora dos
mercados com limite de preços impostos pelo Governo.
Em 2003, ainda sob a presidência de Hugo Chávez, foi criado o programa Mercal, em que os preços de vários produtos são sujeitos ao controlo de preços pelo Governo.
Para piorar a situação, o último ano tem registado recordes no que diz
respeito às taxas de inflação, que estão a minar cada vez mais o poder
de compra dos venezuelanos. Em abril de 2016, a inflação chegava aos 460
por cento.
“Não temos nada para o almoço. Temos de sobreviver e dizer às crianças
que não temos que comer hoje, que elas terão de esperar pelo dia de
amanhã, ou depois de amanhã”, diz uma mãe entrevistada pela HRW. Outros
entrevistados confessaram que “não comiam carne há vários meses”, pois
os preços tornavam-se cada vez mais inacessíveis.
Mais uma fila para um supermercado em Barquisimeto, no Estado de Lara.
Em muitos casos, a alimentação sujeita a controlo de preços já não está
disponível em zonas rurais, fazendo com que as populações tenham de se
deslocar aos grandes centros urbanos, que ainda vão recebendo alimentos.
"Espero nas filas e por vezes não consigo comprar alimentos. Faço cerca de duas refeições por dia... Às vezes como, outras vezes não", confessa uma grávida de 31 anos.
O Governo está a tentar evitar as longas filas de espera com um sistema
que define os dias da semana em que determinadas pessoas podem esperar
numa fila de supermercado, de acordo com o último dígito do número de
identidade.
Cada compra é registada pelo número de identidade e uma
impressão digital, de forma a evitar que a mesma pessoa espere numa fila
mais do que uma vez por semana, em supermercados diferentes. Para
evitar confusões e ultrapassagens nas filas, as autoridades escrevem
números nos braços dos cidadãos.
Os entrevistados contam que vários produtos como o açúcar ou o papel
higiénico desapareceram dos supermercados durante vários meses seguidos.
Além destes, os entrevistados identificaram pasta de dentes e fraldas
como alguns dos bens que mais escasseiam.
Pessoas que faltam ao trabalho para esperar, em média, seis horas nas
filas, crianças que faltam à escola para acompanhar os pais nas filas,
estudantes que desmaiam nas escolas por falta de alimento são alguns
dos casos citados neste relatório.
“Filtro político”
De forma a compensar os militares e apoiantes de Maduro, o Governo
venezuelano dá aos seus apoiantes o poder de distribuir e controlar a
distribuição de produtos, um método que tem levado à discriminação dos
mais críticos na hora de disponibilizar alimentos. A crise que se intensificou no último ano é,
segundo o Presidente, uma circunstância económica “gerada pela queda dos
preços do petróleo e pela guerra não-convencional criada pelos setores
da direita”.
Em abril de 2016, foram criados os CLAP (Comités Locales de
Abastecimiento y Producción) de forma contrariar as carências que chegam
a público. A sua missão consiste na distribuição mensal de sacos com
alimentação essencial às famílias mais necessitadas.
Em várias ocasiões,
os jornais venezuelanos contam que estes comités fazem o filtro
político e ajudam sobretudo os que se dizem apoiantes do Governo. Os
grupos responsáveis pela distribuição exigem o preenchimento de um
inquérito onde se pergunta, entre outras coisas, se pertencem ao partido
de Maduro.
Mas mesmo as famílias que têm acesso a esta ajuda suplementar dizem que o apoio não é assim tão significativo e continuam a contar com os supermercados como fonte primária para colocar comida à mesa.
"Se tiveres quatro pessoas na tua família tens direito a comprar um saco de comida com preços regulados pelo Estado. Mas o que traz esse saco? Um pacote de leite, dois pacotes de massa, três pacotes de farinha e uma lata de leite condensado. Isto para um mês", diz uma testemunha ouvida pela HRW.
A crise que se intensificou no último ano é, segundo o Presidente, uma
circunstância económica “gerada pela queda dos preços do petróleo e pela
guerra não-convencional criada pelos setores da direita”.
Perante os problemas ao nível da alimentação e saúde, a Human Rights
Watch considera que o Governo venezuelano procurou assistência
internacional a um nível muito limitado, face às necessidades
encontradas no terreno. Muitas vezes são as próprias autoridades que se
opõem à ajuda externa e complicam o trabalho das agências humanitárias
no terreno, acusa o relatório.
Um paciente deitado no chão num hospital psiquiátrico de Trujillo. A Human Rights Watch encontrou nesta instalação grande carência de elementos básicos como camas, colchões, roupa e alimentos adequados.
Ambiente hostil
A negação do problema por parte do Governo chega ao ponto de perpetrar
atos de intimidação e violência aos que fizeram críticas públicas às
autoridades ou expressaram mera preocupação sobre a situação do país. A
HRW conta vários casos de venezuelanos comuns detidos e agredidos
pelas autoridades após participarem em protestos de rua contra a
escassez de alimentos.
A organização conta também casos de funcionários públicos e outros
profissionais ameaçados de represálias e até de despedimento. Sobretudo
os profissionais de saúde são um grupo de risco. A Human Rights Watch
conta o caso de vários médicos e enfermeiros que foram avisados para não
falar em público sobre os problemas dos hospitais ou mesmo ameaçados de
despedimento.
A mensagem que o Governo pretende veicular é que as associações de apoio
humanitário não são bem-vindas no país, sobretudo com o veto de
propostas da oposição que endereçam uma resolução dos
problemas. Não há registo de pedidos de ajuda externa às várias agências
da ONU nem sequer ao Mercosul, onde a própria Venezuela vetou uma
resolução que propunha o envio de medicamentos pelos restantes
estados-membros.
No contexto atual, as próprias organizações venezuelanas de Direitos Humanos são olhadas com desconfiança pelas forças governamentais. O
Executivo venezuelano argumenta que muita da ajuda humanitária que se
pretende desenvolver no país tem como objetivo “destabilizar a
República” e responde aos interesses de quem financia as campanhas. Ou
seja, o Governo norte-americano.
“O Governo venezuelano não está sob nenhuma obrigação legal de ter de
assumir publicamente a extensão dos problemas do país e talvez não o
deseje fazer por razões políticas. No entanto, a resposta política à
crise não tem sido tão séria e substancial como a sua retórica publica
inverosímil”, aponta o relatório da Human Rights Watch.
No documento, a organização até reconhece que Nicolás Maduro “poderá ter
razões válidas para desconfiar de alguns tipos de ajuda”, mas tem a
obrigação de se esforçar em identificar os melhores tipos de assistência
de forma a responder às necessidades da população.
Vídeo e fotografias: Human Rights Watch