Soldado venezuelano controla uma fila à entrada de um mercado municipal em Caracas Carlos Garcia Rawlins - Reuters

Relatório da Human Rights Watch denuncia crise alimentar e de medicamentos na Venezuela

Hospitais sem luvas, máscaras, bisturis e outros materiais cirúrgicos, doentes crónicos sem medicação, pais que se deitam sem jantar para possibilitar refeições aos filhos. Estas e outras situações são expostas no último relatório da Human Rights Watch, que acusa o Governo venezuelano de reprimir os críticos e esconder a todo o custo a extensão da crise no país, impossibilitando mesmo a atuação de organizações internacionais de ajuda humanitária.

“Muitas vezes, tivemos de deixar de comprar comida para comprar medicação para a menina. É assim que fazemos na Venezuela: cortar na alimentação para conseguir comprar alguns medicamentos”. Esta é a avó de María Cañizalis, uma menina de quatro anos com asma e vários problemas de saúde frequentes, sobretudo febres e convulsões. À Human Rights Watch, a avó fala sob anonimato, com medo de futuras represálias, e conta que a pequena María recebeu tratamentos incompletos de antibióticos, muitas vezes tomando apenas durante dois dias numa sequência de sete, devido à escassez de medicação disponível. Os tratamentos inacabados levaram a várias recaídas e outras complicações. A agência Reuters dedicou-se ao tema da crise venezuelana em vários ensaios fotográficos sobre os frigoríficos vazios dos venezuelanos e a celeuma do abandono de animais.

Este é um dos muitos casos registados pela organização de Direitos Humanos, que divulga este mês um extenso relatório sobre a situação caótica que se vive no país sul-americano. O documento, conhecido esta segunda-feira, evidencia vários casos de escassez de alimentação e medicamentos, bem como o que designa como “a atuação inadequada e repressiva do Governo”.

Nos últimos meses, a escassez de alimentos e de outros produtos básicos tem sido amplamente noticiada pelos media, com destaque para as longas filas à porta dos supermercados.

A recente descida nos preços do petróleo e a forte desvalorização do bolívar, a moeda venezuelana, aliada à má gestão e às políticas económicas seguidas pelo Governo, levaram Caracas a uma situação de grande instabilidade política, social e humanitária. A oposição política usa estes e outros argumentos para exigir um referendo que retire Nicolás Maduro do poder.

Para além de detalhar o cenário de crise alimentar que se faz sentir no país, o relatório vai mais longe e explora o impacto da escassez de medicamentos e tratamento médico, dentro e fora dos hospitais.


Os pacientes de um hospital de Valencia, em Caraboro, compartilham o último tanque de oxigénio disponível.

A desvalorização da moeda é enorme. Segundo o economista José Manuel Puente, em declarações ao jornal The Guardian, o custo de impressão de cada nota é, em média, 20 por cento superior ao seu valor real. Ou seja, as notas “não valem o que custaram”, explica o perito. A Human Rights Watch recorre mesmo a vários dados, incluindo documentos internos do Ministério da Saúde, que sugerem o incremento anormal das taxas de mortalidade materna e infantil, uma tendência anormal tendo em conta a análise de toda a região da América Latina a que a organização se dedicou.

Na passada semana, o jornal norte-americano The Wall Street Journal recorreu a dados oficiais do próprio Governo venezuelano para mostrar que a mortalidade infantil (no primeiro ano de vida de um nado-vivo) é de 18,6 em 1000 nascimentos, um valor superior ao registado num país em guerra civil como a Síria, por exemplo.
Cenário geral de censura
Em agosto, o secretário-geral das Nações Unidas, Ban Ki-moon, reconhecia que a situação na Venezuela era de “crise humanitária”. Também o alto comissário da ONU para os Direitos Humanos, o príncipe Zeid Ra’ad Al Hussein, dizia em setembro deste ano que a Venezuela tem sofrido “um declínio dramático no usufruto dos direitos sociais e económicos, com a fome cada vez mais generalizada e a forte deterioração de cuidados de saúde”.

O Governo continua a negar a existência de uma crise real. O ministro venezuelano dos Negócios Estrangeiros disse em junho de 2016: “Não há nenhuma crise na Venezuela. Não existe. Digo isto com toda a responsabilidade: não existe nenhuma crise”.

Ao contrário do que costuma acontecer noutras missões da HRW, a organização nota que não procurou o contraditório, evitando contactar responsáveis do Governo venezuelano por temer possíveis represálias. Isto tendo em conta episódios recentes, em que o Governo deteve e expulsou representantes da HRW em 2008 e declarou que a presença da organização não seria “tolerada” no futuro.As missões da Human Rights Watch incluíram visitas a Caracas, capital do país, bem como visitas a cidades em seis diferentes estados, nomeadamente Maracay (em Aragua), Valencia (em Carabobo), Barquisimeto (Lara), San Cristóbal e Capacho (Táchira), Betijoque, Valera e Trujillo (em Trujillo) e Maracaibo (em Zulia).

Ainda assim, a Human Rights Watch esclarece que procurou confrontar o Executivo de Nicolás Maduro com alguns dados, enviando uma carta ao ministro dos Negócios Estrangeiros, Delcy Rodriguez, não obtendo no entanto qualquer resposta.

Luisana Melo, ministra da Saúde, fez declarações concordantes com a posição do Governo: “Em geral, o povo venezuelano tem acesso garantido para tratar todas as suas doenças”.

Por outro lado, quando os responsáveis venezuelanos chegam ao ponto de reconhecer dificuldades económicas e sociais, investem sobretudo numa narrativa de “guerra económica”, travada entre o Governo e a oposição política, o setor privado e o poder de outras nações. Quem ouse criticar ou protestar contra o Governo venezuelano corre o risco de perseguições, espancamentos e detenção.

Diz o relatório que os detidos são julgados muitas vezes em tribunais militares, fora do que é previsto pela lei, que obriga a um julgamento justo. Noutros casos, vários médicos e enfermeiros de hospitais públicos são convidados a manter o silêncio sobre a enorme escassez de recursos nas instalações onde trabalham.

A Human Rights Watch apresenta alguns casos de médicos que foram mesmo detidos ou ameaçados de despedimento em caso de vociferarem críticas ao Governo ou concederem quaisquer declarações à comunicação social sobre as dificuldades que enfrentam no dia-a-dia. O relatório omite ou altera o nome de algumas testemunhas por motivos de segurança para os entrevistados.
Situação caótica nos hospitais
Nos vários hospitais e instituições de saúde visitados pela HRW, com entrevistas a profissionais e pacientes, regista-se a escassez das ferramentas mais básicas. A falta de equipamento médico e material sanitário é mais notória nos últimos dois anos e, segundo a organização humanitária, impossibilita os médicos de prestarem os cuidados de saúde adequados.

O relatório divulgado esta segunda-feira faz a listagem dos materiais que escasseiam nos maiores hospitais do país: desde medicamentos essenciais de primeira linha como antibióticos, anticonvulsivos, relaxantes musculares, sedativos e analgésicos, vacinas contra a raiva ou a varicela, até ao próprio material cirúrgico, como bisturis, cateteres, luvas ou máscaras próprias. Muitas vezes são os próprios médicos e cirurgiões que adquirem e transportam os materiais de operação, perante a falta de recursos nos hospitais.

Segundo os médicos ouvidos pela organização, a ausência de medicação ou material próprio impossibilita tratamentos completos e já resultou, por exemplo, em infeções pós-operatórias, o que terá levado, segundo os profissionais, à morte de vários pacientes.

Esta situação alarga-se também aos bebés e ao acompanhamento dos partos, o que se traduz no aumento exponencial das taxas de mortalidade infantil e materna, bem como em casos de subnutrição.


Uma capa infantil de oxigénio improvisada numa unidade de cuidados em San Cristobal.

“Existe mortalidade neonatal devido à ausência de cuidados pré-natais, mas também devido à falta de higiene básica no hospital, ou devido à sobrelotação. É comum encontrar dois ou três bebés no mesmo berço, dois ou três bebés na mesma incubadora”, conta um médico, falando especificamente na situação de risco dos prematuros. Noutros casos, os bebés são embalados em caixas de cartão. Em setembro, várias fotografias colocadas nas redes sociais causaram indignação na própria sociedade venezuelana.

Mas não só nos hospitais os pacientes encontram barreiras. O relatório conta a situação difícil, por vezes desesperante, para vários pacientes e famílias, que tentam encontrar medicamentos para o tratamento de doenças crónicas ou para obter tratamento considerado urgente.

É o caso de um doente com cancro na cidade de Maracay, que teve de comprar todos os medicamentos necessários ao acompanhamento de uma operação. A mulher conta que tem sido a família, através das redes sociais, a conseguir encontrar e comprar toda a medicação necessária desde então. O relatório conta também outros casos de doentes com cancro que não conseguem pagar os custos enormes dos medicamentos no exterior ou no mercado negro e se organizam em eventos de angariação de fundos.

“A angústia e a incerteza são um pesadelo diário”, conta a mãe de uma menina diabética de 9 anos, cujos pais encontram grandes dificuldades em localizar e comprar insulina. Outros casos são mencionados pela Human Rights Watch em que os doentes são levados ao desespero de tomar medicação fora do prazo.
Escassez de alimentos
As filas dos supermercados são a face mais conhecida desta crise humanitária e atingem as camadas mais pobres da sociedade venezuelana, que não consegue comprar alimentação e outros bens essenciais fora dos mercados com limite de preços impostos pelo Governo. Em 2003, ainda sob a presidência de Hugo Chávez, foi criado o programa Mercal, em que os preços de vários produtos são sujeitos ao controlo de preços pelo Governo.

Para piorar a situação, o último ano tem registado recordes no que diz respeito às taxas de inflação, que estão a minar cada vez mais o poder de compra dos venezuelanos. Em abril de 2016, a inflação chegava aos 460 por cento.

“Não temos nada para o almoço. Temos de sobreviver e dizer às crianças que não temos que comer hoje, que elas terão de esperar pelo dia de amanhã, ou depois de amanhã”, diz uma mãe entrevistada pela HRW. Outros entrevistados confessaram que “não comiam carne há vários meses”, pois os preços tornavam-se cada vez mais inacessíveis.


Mais uma fila para um supermercado em Barquisimeto, no Estado de Lara.

Em muitos casos, a alimentação sujeita a controlo de preços já não está disponível em zonas rurais, fazendo com que as populações tenham de se deslocar aos grandes centros urbanos, que ainda vão recebendo alimentos. "Espero nas filas e por vezes não consigo comprar alimentos. Faço cerca de duas refeições por dia... Às vezes como, outras vezes não", confessa uma grávida de 31 anos. 

O Governo está a tentar evitar as longas filas de espera com um sistema que define os dias da semana em que determinadas pessoas podem esperar numa fila de supermercado, de acordo com o último dígito do número de identidade.

Cada compra é registada pelo número de identidade e uma impressão digital, de forma a evitar que a mesma pessoa espere numa fila mais do que uma vez por semana, em supermercados diferentes. Para evitar confusões e ultrapassagens nas filas, as autoridades escrevem números nos braços dos cidadãos.

Os entrevistados contam que vários produtos como o açúcar ou o papel higiénico desapareceram dos supermercados durante vários meses seguidos. Além destes, os entrevistados identificaram pasta de dentes e fraldas como alguns dos bens que mais escasseiam.

Pessoas que faltam ao trabalho para esperar, em média, seis horas nas filas, crianças que faltam à escola para acompanhar os pais nas filas, estudantes que desmaiam nas escolas por falta de alimento são alguns dos casos citados neste relatório.
“Filtro político”
De forma a compensar os militares e apoiantes de Maduro, o Governo venezuelano dá aos seus apoiantes o poder de distribuir e controlar a distribuição de produtos, um método que tem levado à discriminação dos mais críticos na hora de disponibilizar alimentos. A crise que se intensificou no último ano é, segundo o Presidente, uma circunstância económica “gerada pela queda dos preços do petróleo e pela guerra não-convencional criada pelos setores da direita”.

Em abril de 2016, foram criados os CLAP (Comités Locales de Abastecimiento y Producción) de forma contrariar as carências que chegam a público. A sua missão consiste na distribuição mensal de sacos com alimentação essencial às famílias mais necessitadas.

Em várias ocasiões, os jornais venezuelanos contam que estes comités fazem o filtro político e ajudam sobretudo os que se dizem apoiantes do Governo. Os grupos responsáveis pela distribuição exigem o preenchimento de um inquérito onde se pergunta, entre outras coisas, se pertencem ao partido de Maduro.

Mas mesmo as famílias que têm acesso a esta ajuda suplementar dizem que o apoio não é assim tão significativo e continuam a contar com os supermercados como fonte primária para colocar comida à mesa.

"Se tiveres quatro pessoas na tua família tens direito a comprar um saco de comida com preços regulados pelo Estado. Mas o que traz esse saco? Um pacote de leite, dois pacotes de massa, três pacotes de farinha e uma lata de leite condensado. Isto para um mês", diz uma testemunha ouvida pela HRW.

A crise que se intensificou no último ano é, segundo o Presidente, uma circunstância económica “gerada pela queda dos preços do petróleo e pela guerra não-convencional criada pelos setores da direita”.

Perante os problemas ao nível da alimentação e saúde, a Human Rights Watch considera que o Governo venezuelano procurou assistência internacional a um nível muito limitado, face às necessidades encontradas no terreno. Muitas vezes são as próprias autoridades que se opõem à ajuda externa e complicam o trabalho das agências humanitárias no terreno, acusa o relatório.


Um paciente deitado no chão num hospital psiquiátrico de Trujillo. A Human Rights Watch encontrou nesta instalação grande carência de elementos básicos como camas, colchões, roupa e alimentos adequados.
Ambiente hostil
A negação do problema por parte do Governo chega ao ponto de perpetrar atos de intimidação e violência aos que fizeram críticas públicas às autoridades ou expressaram mera preocupação sobre a situação do país. A HRW conta vários casos de venezuelanos comuns detidos e agredidos pelas autoridades após participarem em protestos de rua contra a escassez de alimentos.

A organização conta também casos de funcionários públicos e outros profissionais ameaçados de represálias e até de despedimento. Sobretudo os profissionais de saúde são um grupo de risco. A Human Rights Watch conta o caso de vários médicos e enfermeiros que foram avisados para não falar em público sobre os problemas dos hospitais ou mesmo ameaçados de despedimento.

A mensagem que o Governo pretende veicular é que as associações de apoio humanitário não são bem-vindas no país, sobretudo com o veto de propostas da oposição que endereçam uma resolução dos problemas. Não há registo de pedidos de ajuda externa às várias agências da ONU nem sequer ao Mercosul, onde a própria Venezuela vetou uma resolução que propunha o envio de medicamentos pelos restantes estados-membros.

No contexto atual, as próprias organizações venezuelanas de Direitos Humanos são olhadas com desconfiança pelas forças governamentais. O Executivo venezuelano argumenta que muita da ajuda humanitária que se pretende desenvolver no país tem como objetivo “destabilizar a República” e responde aos interesses de quem financia as campanhas. Ou seja, o Governo norte-americano.

“O Governo venezuelano não está sob nenhuma obrigação legal de ter de assumir publicamente a extensão dos problemas do país e talvez não o deseje fazer por razões políticas. No entanto, a resposta política à crise não tem sido tão séria e substancial como a sua retórica publica inverosímil”, aponta o relatório da Human Rights Watch.

No documento, a organização até reconhece que Nicolás Maduro “poderá ter razões válidas para desconfiar de alguns tipos de ajuda”, mas tem a obrigação de se esforçar em identificar os melhores tipos de assistência de forma a responder às necessidades da população.



Vídeo e fotografias: Human Rights Watch