Revolta em França. Estudante imolou-se por falta de apoios financeiros

por Graça Andrade Ramos - RTP
"A precariedade mata", denunciam centenas de estudantes franceses após a imolação de um rapaz de 22 anos, incapaz de sobreviver e prosseguir os estudos em Lyon 2 Dernier.e.s. de Cordéé, Twitter

Centenas de estudantes manifestaram-se esta terça-feira em Lyon e noutras cidades de França, incluindo Paris, em choque pela imolação em plena rua de um rapaz de 22 anos, e em denúncia da precariedade que afeta grande parte da população universitária francesa.

O estudante, Anas Kournif, anunciou o ato através de uma mensagem na sua página do Facebook - entretanto encerrada - aproveitando para fazer dele um protesto político, frente ao Centro Regional de Obras Universitárias e Escolares, CROUS, de Lyon, antes de se regar com gasolina e incendiar-se, na sexta-feira, oito de novembro

"Hoje, irei fazer o irreparável", escreveu.

"Se estou a visar o edifício do CROUS não é por acaso. Pretendo um lugar político, o Ministério do Ensino Superior e da Pesquisa e, por extensão, o Governo", começou por explicar Kournif, antes de abordar a sua situação.

Inscrito em Estudos Políticos, A.Kournif perdeu os 450 euros que recebia em bolsas pelo facto de ser repetente do segundo ano do curso, pela terceira vez.

"Este ano, ao fazer um terceiro L2 [segundo ano da licenciatura], não tinha bolsas e, mesmo quando as tinha, 450 euros por mês, isso é suficiente para viver?", perguntou o jovem.

O estudante, igualmente membro do sindicato estudantil Solidaires étudiant-e-s, apontou depois o dedo transversalmente a toda a classe política, apelando à luta.

"Acuso Macron, Hollande, Sarkozy e a UE de me ter matado, ao criar incertezas sobre o futuro de todos os ES, acuso também Le Pen e os editorialistas de ter criado receios mais do que marginais", concluiu.

A mensagem teve centenas de partilhas, a maioria por parte de estudantes indignados.
"Podia ter sido outro qualquer"
De acordo com o Solidaires, que apelou a manifestações em meia centena de cidades, o gesto "extremo" de Kournif, ilustra uma precariedade comum.

"Não estamos a salvo de outras tentativas de suicídio", afirmou um estudante, através de um altifalante durante os protestos de terça-feira, exigindo "uma tomada de posição publica do Ministério".Kournif foi hospitalizado com 90 por cento do corpo queimado e, terça-feira, cinco dias depois de se ter imolado, permanecia entre a vida e a morte.

No sábado, Nathalie Dompnier, reitora de Lyon 2, a universidade de Kournif, garantiu à Agência France Presse desconhecer totalmente as "dificuldades pessoais" por que passava o estudante imolado, que descreveu como "muito empenhado nos organismos" da Universidade.

"São dificuldades conhecidas de muitos estudantes", considerou por seu lado Bastien Pereira Besteiro, professor em Lyon 2 e militante do sindicato Educação Sul.

"Podia ter sido outro qualquer", afirmou, acrescentando que "não é normal chegar a estes extremos para se fazer ouvir, os poderes públicos devem assumir as suas responsabilidades".

Calcula-se que, em França, um estudante em cada dois tenha de trabalhar enquanto estuda, para sobreviver. Cerca de 19 por cento vivem numa situação de pobreza.

#LaPrecaritéTue

A França inteira ficou impressionada com o sucedido. Um deputado, Eric Coquerel, assumiu mesmo publicamente que "viveu com 300 euros por mês, forçado a trabalhar numa fábrica e a roubar comida comer. Somos levados a pensar em suicídio", referiu na rede Twitter.

O movimento estudantil francês criou nesta rede a hashtag #LaPrecaritéTue [A precariedade mata], para reunir testemunhos, lançar campanhas e apelar a manifestações e ações de protesto.

Numa publicação, Ada Webster refere o seu caso. "Estudante, tinha 400 euros de bolsa. Sem direito a alojamento CROUS por estar cheio. Menos de 25 anos, sem direito ao RSA. Sem filhos, nenhum apoio social. Com + de 40 horas de aulas por semana, tive de trabalhar aos fins-de-semana para sobreviver. Os estudantes sofrem!", escreveu.


De acordo com dados da UNEF, os custos de alojamento, privado ou no CROUS, transportes e propinas, aumentaram mais de 2,8 por cento para um estudante do Ensino Superior em 2019, o dobro da inflação.

Terça-feira, em Paris, a manifestação juntou centenas de estudantes e o seu início pacífico depressa assumiu contornos mais violentos.

Primeiro reunidos diante do edifício dos serviços universitários, CROUS, da capital, o protesto "transformou-se num cortejo não autorizado no quartier latin", de acordo com fontes policiais.


Alguns manifestantes dirigiram-se ao Ministério do Ensino Superior e "estragaram" o portão da entrada das traseiras do edifício, antes de a calma regressar "após a intervenção das forças da ordem".

"Lyon, Lyon, ni oubli, ni pardon"

Em Lille, o ex-Presidente francês François Hollande foi impedido de dar uma conferência na faculdade de Direito, por estudantes em protesto contra a precariedade estudantil.

Hollande não chegou a entrar no anfiteatro reservado para a conferência, invadido por uma centena de pessoas, que rasgaram os livros que Hollande ia assinar, aos gritos de Lyon, Lyon, ni oubli ni pardon ["Lyon, Lyon, nem esquecimento, nem perdão"], "Hollande Assassino!" e "a precariedade mata, são todos responsáveis".Em comunicado, o ministro do Ensino Superior condenou com firmeza "a violência e os danos que tiveram lugar à margem dos encontros que se deram" durante o dia de terça-feira.

Os protestos estudantis, por enquanto de pequena dimensão, podem ganhar força a qualquer momento. Estão já a ser marcadas novas manifestações para 14 e 16 de novembro e outras deverão seguir-se.

A revolta coincide com a aprovação, pela Assembleia Nacional, de um aumento de dois milhões de euros no Orçamento do Eliseu.

Os estudantes deverão assim marcar as próximas semanas, até às manifestações contra o plano de reformas anunciado pelo Presidente Emmanuel Macron, marcadas para dia 5 de dezembro, e depois do exemplo do movimento dos "coletes amarelos".

Anas K., como já é conhecido, trouxe à tona a angústia de milhares de jovens franceses, inquietos com o seu presente e sem perspetivas de grande futuro.

Foi "um ato desesperado que diz muito da nossa precariedade atual", denunciaram centenas dos estudantes que se manifestaram por todo o país.
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