Rodrigo Duterte promulga Lei Anti-Terrorismo entre críticas e protestos

por Graça Andrade Ramos - RTP
Protestos na Cidade de Quezon, Manila, Filipinas, contra a "Lei do Terror" a 4 de junho de 2020 Reuters

Penas até prisão perpétua para quem cometa, ou apenas incite ou facilite, atos considerados terroristas, como "intimidar" e "criar uma atmosfera de medo", ou "desestabilizar ou destruir" as estruturas da sociedade filipina. Detenção de suspeitos de terrorismo, sem mandato e sem compensações em caso de engano. Reforço dos poderes do Conselho Anti-Terrorista das Filipinas.

Apesar da oposição de muitos deputados, a nova legislação filipina de combate ao terrorismo já tinha sido aprovada pelo Congresso, a quatro de junho, e entraria automaticamente em vigor este sábado, caso o Presidente não a assinasse ou não a vetasse.

Rodrigo Duterte assinou-a esta sexta-feira, de acordo com uma mensagem de texto enviada aos jornalistas pelo seu porta-voz, Harry Roque.

Pelo menos 16 grandes grupos económicos criticaram de forma severa a nova legislação, que consideraram "muito divisiva pois coloca clara e atualmente em perigo os Direitos Humanos consagrados na nossa Constituição, num altura em que a nossa nação necessita de se unir numa só", devido à pandemia de Covid-19.

Ativistas, grupos de advogados, ONGs de defesa dos Direitos Humanos e a própria ONU, denunciaram o perigo que a nova legislação representa, referindo que a sua abrangência abre a porta a todo o tipo de abusos e de perseguições a dissidentes.

Também a Igreja Católica uniu a sua voz à oposição e as instâncias judiciais prometeram rever a Lei quanto ao seu potencial de violação dos direitos constitucionais.

Isto foi antes de Rodrigo Duterte a promulgar.
O que prevê a nova Lei Anti-Terrorista
A nova legislação vem substituir as disposições da Lei sobre Segurança Humana de 2007, e alarga os poderes estatais de vigilância, além de aumentar, dos 12 anos até prisão perpétua, a moldura penal para quem proponha, incite, conspire e facilite "atos terroristas", contra o Governo filipino e a população das Filipinas.

Os poderes do Conselho Anti-Terrorista, responsável pela implementação da lei e cujos membros são nomeados pelo Presidente, foram reforçados.

De acordo com a Lei Anti-Terrorismo 2020, são terroristas todos os atos que provoquem "a morte ou ferimentos graves a qualquer pessoa", "grandes estragos ou a destruição" de instalações governamentais, de propriedade privada ou de infraestruturas decisivas, e quando o objetivo destas ações seja a "intimidação do público em geral", "criar uma atmosfera ou mensagem de medo" e ainda "desestabilizar ou destruir de forma séria as estruturas políticas, económicas e sociais do país".

É igualmente crime "ameaçar, planear, treinar e facilitar" atividades terroristas, e "propor" ou "incitar" a atos terroristas através de discursos, de proclamações, de textos escritos, de bandeiras e de emblemas.

Duas destas últimas disposições, o "propósito" de cometer atos terroristas e o "treino" de pessoas com o intuito de as levar àqueles crimes, são uma novidade em relação à anterior legislação.

Os suspeitos poderão ser vigiados e sujeitos a prisão até 14 dias, sem mandado e sem serem presentes a juiz, algo que ativistas e grupos ligados à advocacia consideram "perigoso", uma vez que viola o direito à presunção de inocência.

Quem for acusado e considerado culpado destes crimes arrisca prisão perpétua sem possibilidade de liberdade condicional. Se, pelo contrário, for inocentado, não terá direito a qualquer compensação.
Um "desastre"
A responsável da ONU pelos Direitos Humanos, Michelle Bachelet, apelou a Duterte para não passar a lei, por considerar que esta poderá implicar a violação de direitos humanos e por em perigo a vida de ativistas legítimos.

No seu relatório de 1 de julho sobre as Filipinas, perante o Conselho das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Bachelet criticou ainda a nova Lei Anti-Terrorista por "diluir" legislação pré-existente.

Alta Comissária da ONU para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet Foto - Reuters

Em vez de assinar a proposta de lei, Duterte deveria promover "um processo de consulta alargado para desenvolver legislação que possa efetivamente prevenir e combater o extremismo violento, mas que inclua algumas salvaguardas para evitar o seu abuso contra pessoas comprometidas com a crítica pacífica e defesa", considerou Bachelet.A Comissão Filipina para os Direitos Humanos diz que a nova Lei é "um desastre de direitos humanos à espera de acontecer".

Os apoiantes da legislação dizem que o seu objetivo é terminar com rebeliões islamitas e comunistas que assolam o pais há décadas.

Mas os críticos da nova Lei receiam que as autoridades venham a interpretá-la de forma a deter todo o tipo de desacordo com o sistema.

Ativistas em geral enfrentam um "perigo real e sério"
, afirmou Renato Reyes, secretário-geral de uma aliança de causas de esquerda baseada em Manila, a Bagong Alyansang Makabayan. As pessoas poderão ser detidas e as suas contas bancárias congeladas "apenas com base numa mera suspeita", referiu.

"É muito fácil fazê-lo, uma vez que os críticos são muitas vezes rotulados como afiliados comunistas ou organizações de fachada de comunistas", afirmou Reyes. "Vai abranger ativistas legais e todos os outros críticos e até pessoas normais", avisou.

O texto da legislação "é muito ambíguo e abre a porta a abusos, apesar de incluir uma salvaguarda de que as manifestações e as críticas ao Governo não estão incluídas, dado que a definição de terroristas é muito vaga e sujeita a muitas interpretações", considerou por seu lado Maria Ela Atienza, professora de Ciências Políticas da Universidade Diliman das Filipinas.
Operadora de televisão proibida de emitir
Num outro sinal de alarme para as organizações mundiais de defesa dos Direitos Humanos, uma subsidiária da ABS-CBN, que se assume como a maior emissora independente das Filipinas, foi proibida esta sexta-feira de emitir o seu sinal de televisão digital e as suas emissões satélite domésticas, diretas a casa.

A Comissão Nacional de Telecomunicações ordenou à operadora de cabo da ABS-CBN, a Sky Cable Corp, "cessar e desistir imediatamente" da sua atividade. A ABS-CBN diz que chega a 11 milhões de casas e a 55 milhões de filipinos, cerca de metade da população do país.

A principal licença para operar da ABS-CBN caducou em maio ao fim de 25 anos e não foi renovada, o que levou a empresa a apelar ao Supremo Tribunal para reverter a decisão. A emissora foi proibida de emitir conteúdos de rádio e televisão mas continua a poder publicar nas redes sociais.

Em 2016, durante a campanha que levou à eleição de Duterte, a ABS-CBN recusou emitir alguns dos anúncios pagos do então candidato. Apesar dos seus pedidos de desculpa, Duterte não perdoou e afirmou que não iria autorizar a renovação da licença da empresa.

Manifestação de apoio aos trabalhadores da operadora filipina de televisão ABS-CBN, em fevereiro de 2020 Foto - Reuters

O Governo afirmou que defende a liberdade de expressão e considerou que os problemas da emissora são legais e não políticos. O sindicato nacional de Jornalistas das Filipinas afirma contudo que está em risco a liberdade para reportar de forma independente.

"Fica claro que o fito desta Administração é não somente calar a ABS-CBN, mas dar um recado a toda a indústria de media de que outras organizações noticiosas podem sofrer o mesmo destino a não ser que desistam do seu papel de vigilância", referiu o sindicato em comunicado.

A proibição aplicada a ABS-CBN está a ser encarada como mais um sintoma da política de perseguição aos críticos do Presidente, de que a Lei Anti-Terrorista poderá ser um instrumento vital.

"Não se trata de ir atrás de terroristas", referiu o advogado de Direitos Humanos, Jose Manuel Diokno, mas de "críticos desta Administração".
Luta contra o comunismo
Vários analistas acreditam que as autoridades irão usar a nova legislação para agir especificamente contra o Novo Exército do Povo, um braço armado do Partido Comunista das Filipinas, cujas bases se encontram nas zonas rurais mais pobres e que terá cerca de 4.000 membros, muitos deles recrutados nas universidades, polos centrais da contestação a Duterte.

De acordo com o Partido Comunista filipino, até 10 de abril, registaram-se tumultos em 219 localidades de 31 das 81 províncias do país. Dia 1 de maio, o Partido Comunista cancelou o cessar-fogo vigente, ao mesmo tempo que acusava o exército filipino de ter matado mais de 30 mil pessoas nos últimos 50 anos.

Um mês depois, o Presidente pediu ao Parlamento para aprovar a nova Lei Anti-Terrorista, com caracter de urgência.

A 5 de junho, o grupo Human Rights' Watch afirmou num comunicado que o Governo já tinha começado a "visar" centenas de ativistas, agricultores, ambientalistas, líderes sindicais e jornalistas, entre outros, "por suspeita de serem comunistas ou simpatizantes comunistas" e aproveitando a quarentena imposta pela pandemia do novo coronavírus.
Impunidade policial
O Presidente filipino, eleito em 2016, ficou conhecido mundialmente pelo seu combate violento e sem tréguas ao tráfico de droga, e que provocou desde então a morte a milhares de pessoas.

Entre estas estarão pelo menos 120 crianças e jovens, de acordo com um novo relatório publicado em Genebra, segunda-feira passada.

O relatório da Organização Mundial contra a Tortura (OMCT), afirma que 122 menores, entre 1 e 17 anos, terão sido abatidos em todo o país, 40 por cento pela polícia e os restantes 60 por cento por desconhecidos de cara tapada, alguns dos quais tinham ligações diretas à polícia.

"Esta será apenas a ponta do iceberg, é provável que haja muitos mais", revelou o secretário-geral da OMCT, Gerald Staberock ao apresentar o texto numa conferência de imprensa virtual.
De acordo com a OMCT, algumas das 122 vítimas foram alvos diretos, sobretudo quando eram testemunhas incómodas de outros assassinatos. Outros foram mortos por erro de identidade ou porque o verdadeiro suspeito não foi encontrado. Ainda outros foram atingidos por balas perdidas durantes operações de segurança.
"Falamos da execução de crianças. Pensem em George Floyd", indignou-se, referindo-se ao homem asfixiado em Minneapolis, EUA, devido à  pressão do joelho de um polícia norte-americano, e cuja morte enquanto resistia à detenção, captada num vídeo que se tornou viral, provocou protestos em todo o mundo contra o racismo e a violência policial.

"Imaginem que teriam visto estes 122 casos filmados, imaginem o clamor que isso não teria gerado", desafiou Staberock.

O relatório denuncia a política implantada pelo próprio Estado filipino e a impunidade de que gozam os responsáveis pelas mortes.

Myca Ulpina, de 3 anos, morreu em julho de 2019, durante uma operação anti-droga nas Filipinas. A polícia diz que foi usada como escudo pelo próprio pai. A mãe desmente a versão Foto - Reuters

A polícia filipina afirma que muitas crianças são usadas como escudos humanos pelos próprios pais quando resistem à prisão durante as operações anti-droga.

A OMCT revelou também que a luta contra o tráfico levou a um enorme aumento das detenções e prisões de menores, muitas vezes usados como mulas pelos traficantes, o que provocou a sobrepopulação nos centros de detenção onde os mais novos são frequentemente vítimas de abusos.
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