Seca e fome em Madagáscar. Impacto das alterações climáticas nos direitos humanos

por Carla Quirino - RTP
© Pierrot Men/Amnesty International.

A Amnistia Internacional tornou público hoje um relatório onde alerta para a grave situação de insegurança alimentar de mais de 1,1 milhão de pessoas, na região sul de Madagáscar, devido à seca e consequentemente à fome e falta de água potável. A ONU descreve esta crise como provavelmente a primeira fome resultante do aquecimento global.

Mais de um milhão de pessoas no sul de Madagascar está a lutar para sobreviver à grande seca que assola o país há, pelo menos, cinco anos. 

Os campos de cultivo não resistem por falta de chuva e a carência alimentar na região já é descrita pela ONU como a primeira fome provocada pelas alterações climáticas.

Tanto a ONU como a Amnistia Internacional (AI) concluem que, se as secas recorrentes são indicadoras da intensificação das alterações climáticas na região, os inexistentes recursos agrícolas e a consequente fome tem um impacto direto sobre os direitos humanos das comunidades no Extremo Sul do país.
Joel Kouam - Reuters

"A desnutrição na região está a aumentar, enquanto o acesso à água, saneamento e higiene são cada vez mais precários, resultando em impactos negativos sobre os direitos humanos nas comunidades do sul de Malagasy" diz o documento da AI.

A seca ameaça "os direitos à vida, à alimentação, água e saúde". Mais de um milhão de pessoas estão em situação de fome aguda, o que pode significar morte por fome, adverte Agnès Callamard, secretária-geral da AI.
Seca e fomeMadagáscar é a quarta maior ilha do mundo e localiza-se no oceano Índico, em frente à costa moçambicana. A estação das chuvas vai de novembro a abril mas os sucessivos anos de seca severa forçaram as famílias rurais a procurar alimentos alternativos.

Os dados científicos sugerem que a mudança climática global provavelmente contribuíu para um aumento nas temperaturas no extremo sul que, reduzindo a precipitação, a probabilidade de seca aumentou.

"Em algumas áreas, onde nada cresce, as pessoas estão a sobreviver apenas a comer gafanhotos, frutas e folhas de cactos, mas as folhas do cacto geralmente são destinadas ao gado, não é para consumo humano", declarou Alice Rahmoun porta-voz do Programa Alimentar Mundial (PAM) da ONU.

"Em algumas áreas a população ainda consegue plantar alguma coisa, como a batata doce, mas não é nada fácil", acrescentou.

"Podemos dizer que os impactos das alterações climáticas são realmente cada vez mais fortes
... as colheitas falham constantemente e as pessoas não têm nada para colher e nenhum alimento para armazenar. Até os cactos estão a morrer com falta de chuva e de água, é muito, muito preocupante", diz Rahmoun.

A AI convoca tanto o governo de Madagascar como a comunidade internacional para intensificar esforços de socorro à população, onde o "fornecimento de alimentos e a salvaguarda do acesso a água limpa e segura" serão fundamentais para a sobrevivência de mais de 1,1 milhão de pessoas.

David Beasley do PAM visitou o território e testemunhou que as pessoas estão a morrer de fome severa e afirmou que "não se deve a guerras ou a conflitos mas sim às alterações climáticas".

 A agência da ONU espera juntar mais de parceiros para aumentar a ajuda alimentar e evitar uma catástrofe iminente, com meio milhão de crianças a sofrerem de má nutrição.
Programa alimentar distribuído a crianças, PAM | Joel Kouam - Reuters

As comunidades estão a mudar o quotidiano para sobreviverem. Muitas famílias já tiraram os filhos da escola e quem ainda tem algum gado está a vendê-lo.

A porta-voz do PAM diz que "Estão a vender o gado, por exemplo, para conseguir dinheiro para comprar comida, quando antes, estas comunidades alimentavam-se da própria produção do campo. A seca está realmente a mudar o dia a dia das pessoas".

"A estratégia para reunir as forças da família está centrada em encontrar atividades geradoras de rendimento envolvendo crianças, e isso obviamente, tem um impacto direto na educação", sublinhou Rahmoun.
Recomendações da Amnistia Internacional
A Aministia Internacional defende que a os efeitos da alterações climáticas são responsabilidade de todos e propõe que a comunidade internacional deve compensar a população de Madagáscar com ajuda humanitária imediata e acrescentar um financiamento extra por perdas e danos sofridos.

O relatório da AI  deixa um conjunto de recomendações dirigidas aos países industrializados que apontam para adoção de medidas ambiciosas na limitação das emissões de carbono. Em vésperas da Conferência climática Cop26, a AI propõe que haja uma redução "em 50% bem antes de 2030 e chegar a zero emissões de carbono até 2030 ou o mais rápido possível depois disso, garantindo uma transição justa que aprimore os direitos humanos".

A AI apela aos países ricos para se comprometerem em contribuir para o fundo acordado de 100 mil milhões de dólares ano, para aplicar em acções climática em países com menos recursos.
Joel Kouam - Reuters

A cooperação internacional também deve passar pelo fornecimento de tecnologias a Madagascar de forma a permitir os níveis essenciais de direitos económicos, sociais e culturais das populações do Extremo Sul, diz o relatório.

Às autoridades governamentais de Madagáscar são lhes exigidas investimentos concretos para "garantir que a infraestrutura crucial, como água, saneamento, saúde e educação, seja resiliente aos impactos climáticos" sobretudo nas áreas afetadas.

O governo é chamado a reforçar o fornecimento de assistência alimentar de emergência e apoiar práticas agrícolas para aumentar os meios de subsistência. A AI também aderte para a "conservação de florestas e outros ecossistemas naturais".

Sob o lema "Será tarde demais para nos ajudarem, pois estaremos todos mortos", o relátório da AI estima que a situação em Madagáscar se deteriore nos próximos meses e endureça ainda mais as condições de 91% da população que já vive abaixo do limiar da pobreza.

Madagáscar é a prova de que os padrões metereológicos estão a mudar e Alice Rahmoun insiste na necessidade  das comunidades estarem bem preparadas "para responder aos choques climáticos".


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