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Squid Game. Série expõe a realidade da crise de endividamentos na Coreia do Sul

por Joana Raposo Santos - RTP
Squid Game estreou a 17 de setembro na Netflix e, em menos de um mês, tornou-se a série mais vista de sempre nessa plataforma de streaming. Eloisa Lopez - Reuters

A série Squid Game já se tornou a mais vista de sempre da plataforma Netflix. No centro do enredo, um grupo de centenas de pessoas endividadas que se sujeita a jogos fatais na esperança de sobreviverem e vencerem um gigantesco prémio monetário. A ficção radical parece ter uma inspiração bem real: na Coreia do Sul, onde a série foi criada, uma crise de endividamentos afeta cada vez mais indivíduos.

Uma entidade anónima, cujos membros escondem o rosto com máscaras, procura pessoas endividadas por toda a Coreia do Sul para lhes fazer uma proposta: se aceitarem participar numa série de jogos infantis, podem ganhar 45.6 milhões de won (o equivalente a 33 mil milhões de euros).

Quase 500 pessoas aceitam o convite, mas só quando começam o primeiro jogo se apercebem que estão a colocar em risco a própria vida. Ainda assim, a grande maioria opta por continuar no desafio, com o único objetivo de ganhar o dinheiro que poderá saldar todas as suas dívidas.

Esta distopia aterradora, criada por Hwang Dong-hyuk e levada aos ecrãs pela Netflix, tem por base uma realidade preocupante: na Coreia do Sul, as dívidas das famílias equivalem atualmente a mais de 100 por cento do Produto Interno Bruto (PIB). É o valor mais elevado em toda a Ásia.

Este endividamento é acompanhado por um fosso cada vez maior entre os rendimentos dos mais pobres e dos mais ricos, fosso esse que é acentuado pelo aumento do desemprego jovem e pelo crescimento compulsivo dos preços das casas nas grandes cidades, onde os trabalhadores comuns não podem dar-se ao luxo de morar.

Neste cenário, basta um mau investimento ou simplesmente ausência de rendimentos para que um indivíduo seja forçado a recorrer a credores de alto risco de modo a conseguir sobreviver - tal como é ilustrado em Squid Game.

Lee In-cheol, diretor executivo da instituição Real Good Economic Research Institute, acredita que o endividamento é uma experiência universal, mas que não é coincidência a série Squid Game passar-se precisamente na Coreia do Sul.

“O montante total da dívida acumulada pelos sul-coreanos excede o PIB em cinco por cento”, referiu o especialista em entrevista ao Guardian. “Em termos individuais, isso significa que mesmo que alguém tenha poupado todos os cêntimos que ganhou ao longo de um ano inteiro, continuará a não ser capaz de pagar a sua dívida. E o número de pessoas com endividamentos está a aumentar a um ritmo exponencial”, alertou.

Para tentar resolver o problema, a comissão de serviços financeiros da Coreia do Sul decidiu que os maiores bancos deveriam pôr um travão nos empréstimos aos clientes. “Mas será que isso vai realmente ajudar as pessoas, especialmente numa altura de pandemia de covid-19?”, questionou In-cheol.
Um caso real que parece saído de Squid Game
Aos 35 anos, Choi Young-soo (nome ficcional) trabalha em part-time a fazer entregas de refeições e vive num quarto de um hostel, que partilha com cerca de 30 pessoas. Em Gangnam, zona cara e moderna da capital Seul, esse é o único alojamento que consegue pagar.

“Os quartos do hostel são apenas ligeiramente maiores que caixões”, disse ao Guardian, partilhando a sua realidade enquanto sul-coreano endividado e sem recursos.

Levando uma vida que poderia ter sido imaginada para a série Squid Game, Choi é um dos muitos que recorreram aos empréstimos fáceis de obter no país. Há dois anos trabalhava como engenheiro informático numa empresa do complexo industrial de Pangyo – o equivalente coreano a Silicon Valley.

O stress e o excesso de trabalho levaram-no a decidir, em conjunto com a sua mulher, abrir um bar na cidade natal de ambos, Incheon. “Não esperávamos tornar-nos milionários. Ficaríamos satisfeitos se ganhássemos o mesmo que antes. Só queria conseguir dormir mais horas”, explicou.

Tudo estava a correr como planeado até à chegada da pandemia de covid-19. Com as restrições de horários, o número de clientes caiu a pique e o casal deixou de conseguir pagar a renda de casa. Foi nessa altura que pediu um empréstimo.

Na Coreia do Sul, obter um empréstimo é surpreendentemente fácil. O problema, como veio a descobrir Choi Young-soo, são os juros: quatro por cento apenas nesse primeiro empréstimo.

Ainda assim, em poucos meses o casal acabou por recorrer a empréstimos em cinco dos maiores bancos sul-coreanos, hipotecando a casa onde vivia. Entrou, então, num ciclo vicioso no qual fazia empréstimos para pagar os já existentes. Em alguns casos, os juros chegavam a ser superiores a 17 por cento.

“Nessa altura já não me interessava o quão elevados eram os juros”, confessou Choi. “Estava a receber tantas chamadas e mensagens a exigir que pagasse os meus empréstimos. Isso dominou as nossas vidas”.

O desespero culminou com a mulher de Choi a ter de trabalhar num restaurante noutra parte do país. O casal teve de pedir aos pais de um deles para ficarem a tomar conta dos seus dois filhos pequenos.

Choi disse ao Guardian já ter ouvido falar na série Squid Game mas, sem dinheiro, não tem como conseguir vê-la. “De qualquer modo, por que razão quereria eu ver um grupo de pessoas com enormes dívidas? Para isso basta olhar-me ao espelho”, afirmou.

Squid Game estreou a 17 de setembro na Netflix e, em menos de um mês, tornou-se a série mais vista de sempre nessa plataforma de streaming, alcançando mais de 111 milhões de contas de utilizadores.
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