Televisão estatal russa desafia Kremlin e critica guerra na Ucrânia

por Inês Moreira Santos - RTP
Reuters

Contrariamente ao resto do mundo, a população russa não tem, na sua grande maioria, conhecimento do que se passa no país vizinho, neste momento. Vladimir Putin proibiu a comunicação social da Rússia de usar as expressões "guerra" ou "invasão" e declarou aos russos que estavam a ser realizadas "operações militares especiais" na Ucrânia. As redes sociais também começam a ficar cada vez mais limitadas e as publicações censuradas. Mas na quinta-feira à noite, a televisão estatal russa desafiou o Kremlin ao transmitir a opinião de um comentador que criticou a ofensiva russa em direto.

O canal Russia 1 é uma das emissoras estatais mais vistas no país e uma das que tem seguido as diretivas autoritárias do Kremlin, quanto à situação da Ucrânia. Mas na quinta-feira à noite os convidados de um programa transmitido em horário nobre revolucionaram o tempo de antena russo, recusando-se a apoiar a narrativa das televisões encomendada pelo Governo russo.

Semyond Bagdasarov, um famoso académico e deputado russo, aproveitou a sua presença no programa 'An Evening with Vladimir Soloviev' (um homem referido como o propagandista-chefe de Putin) para pedir ao presidente russo que ponha fim ao ataque, deixando ainda o alerta de que os aliados da Rússia, como a China e a Índia, podiam acabar por virar as costas a Moscovo.

Segundo Bagdasarov, a ofensiva russa na Ucrânia é “ainda pior” que a invasão do Afeganistão no tempo da União Soviética.

“Há mais pessoas e estão mais preparadas a manusear armas"
, disse no programa. “Não precisamos disso. Já chega!”.

Para o convidado da televisão, se este conflito se transformar num desastre humanitário, até os aliados “mais próximos” da Rússia “serão forçados a distanciar-se”.

A opinião pública que estamos a gerar no mundo inteiro pode acabar mal para nós”, advertiu Bagdasarov. “Pôr fim a esta operação vai estabilizar as coisas a nível nacional”.

No mesmo programa, o cineasta e especialista político, Karen Shakhnazarov, também tentou desmentir a narrativa do Kremlin de que se trata apenas de uma “operação especial” na região de Donbass. Desafiando o Governo de Putin, em horário nobre, o cineasta revelou mesmo que havia ataques à capital da Ucrânia e cidades perto.

“Não consigo imaginar cidades como Kiev a serem tomadas. Não consigo imaginar como seria isso”
, disse Shakhnazarov.

“A guerra na Ucrânia parece um cenário assustador, tem uma influência muito opressora na nossa sociedade. A Ucrânia, independentemente da forma como a vemos, é um país com o qual a Rússia tem milhares de ligações humanas”, continuou, lamentando que “o sofrimento de um grupo de inocentes não compensa o sofrimento de outros inocentes”.

“Não acho que haja poder político que consolide a sociedade ucraniana numa direção pró-Rússia”
, disse ainda. “Aqueles que referiam uma atração em massa pela Rússia obviamente não viam as coisas como elas são. O mais importante neste cenário é parar a nossa ação militar”.

Os dois convidados manifestaram-se contra a ofensiva russa num programa de televisão, apesar de na semana passada ter sido aprovada uma lei que permite até 15 anos de prisão para quem divulgar “fake news sobre a guerra”, ou seja, a quem criticar as ações do Kremlin.

Praticamente todos os meios de comunicação independente na Rússia encerraram, desde a aprovação dessa lei, estando ativos praticamente só os meios de comunicação do Estado, controlados pelo Governo e que informam a população sobre uma “operação militar especial” para “desnazificar” a Ucrânia.
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