Tunísia. Referendo à nova Constituição divide Presidente e oposição

por Lusa

As principais alterações à Constituição da Tunísia propostas pelo Presidente tunisino para "corrigir o curso da revolução" vão ser submetidas a referendo na próxima segunda-feira, com a oposição a apelar ao boicote e denunciar uma "deriva autoritária" de Kais Saied.

Algumas questões essenciais baseadas numa investigação da Organização de direitos humanos Human Rights Watch (HRW):

+++ Quais as principais alterações ao novo texto? +++

A nova Constituição sugere o regresso a um sistema presidencial, semelhante ao existente antes da revolução de 2011 e que terminará com o híbrido sistema parlamentar-presidencial previsto no texto aprovado em 2014.

O Presidente Kais Saied promulgará a Constituição em caso de aprovação, e designará um chefe de Governo. Também indicará os restantes ministros, propostos pelo chefe do Governo, mas terá poderes para os demitir de forma unilateral, sem necessidade de aprovação pelo Parlamento. Uma fórmula que contrasta com a Constituição de 2014, onde uma maioria parlamentar era responsável pela formação do Executivo.

O Presidente terá poderes para declarar um estado de exceção no caso de "perigo iminente", sem consultar outros órgãos, incluindo o Tribunal Constitucional, como sucedia previamente.

O projeto não prevê qualquer processo para destituir o Presidente, outra medida inserida no texto de 2014 no caso de "flagrante violação da Constituição".

O projeto mantém um limite de dois mandatos na presidência, mas retira uma provisão da Constituição de 2014 que impedia uma emenda no texto para aumentar o número de mandatos.

A nova Constituição também prevê, para além do parlamento (Assembleia de Representantes do Povo, ARP) uma segunda câmara, o Conselho de Regiões e Distritos, com eleitos por membros dos conselhos regionais e distritais, e não por voto universal.

Os poderes da ARP são reduzidos, mesmo que mantenha autoridade para elaborar e aprovar leis. Poderá ainda apresentar uma moção de censura ao Governo, mas através de um processo mais complexo. O texto prevê que os membros da ARP sejam eleitos por voto direto, em eleições gerais.

+++ A nova Constituição adapta-se à deriva autoritária de Saied? +++

O novo projeto de Constituição adapta-se ao crescente poder autoritário de Saied, imposto de forma unilateral em 25 de julho de 2021, ao concentrar o poder na presidência em detrimento de outras instituições. Saied enfraqueceu as instituições democráticas tunisinas ao suspender, e de seguida dissolver, a ARP, para além do Alto Conselho Judicial (HCJ), cujas funções incluíam a proteção da independência judicial, e da Comissão Nacional Anticorrupção.

+++ Havia muitos tunisinos críticos da Constituição de 2014? +++

Muitos tunisinos concordaram com a decisão de Saied de julho de 2021 destinada a reforçar a sua autoridade e dirigiam o seu descontentamento para a ARP, por considerarem o Parlamento muito responsável pela paralisia governamental. Em particular, censuravam o falhanço em reverter o declínio da economia tunisina e a ineficaz abordagem à pandemia da Covid-19.

O projeto constitucional de Saied reduz drasticamente o poder concedido ao Parlamento pela Constituição de 2014, incluindo os poderes que eram concedidos ao parlamento na questão dos direitos humanos.

+++ Quais as principais diferenças entre os dois textos em relação aos direitos humanos e liberdades públicas? +++

A secção da Constituição relacionada com os direitos e liberdades contém algumas alterações aos direitos, mas mantém dois critérios já inscritos na Constituição de 2014 sobre direitos individuais, segurança pública, defesa nacional ou saúde pública", para além de considerar que as restrições "não podem afetar os direitos e liberdades garantidos pela Constituição".

No entanto, o novo projeto compromete a independência dos tribunais, decisiva para salvaguardar os direitos das pessoas, e refere-se a uma "função judicial" ao contrário de "autoridade judicial", como estava mencionado da Constituição de 2014.

Menciona ainda o Alto Conselho Judicial (HCJ) mas não refere como serão designados os seus membros nem as suas responsabilidades, incluindo na preservação da independência judicial.

No projeto, o Presidente designa juízes, após indicação do HCJ, fornecendo ao chefe de Estado um poder decisivo na nomeação de juízes em comparação com a Constituição de 2014.

Kais Saied já coartou a independência judicial. Em 12 de fevereiro de 2022 emitiu um decreto que dissolveu o HCJ, substituído por um organismo temporário e com alguns dos seus membros nomeados pelo Presidente. Em 01 de junho, Saied também assinou o decreto-lei 2022-35, que lhe fornece autoridade para demitir juízes de forma sumária, e nesse mesmo dia afastou 57 destes magistrados.

Os juízes entraram em greve durante três semanas para contestar esse decreto. A nova Constituição retira-lhes o direito à greve.

O poderoso Tribunal Constitucional é preservado, podendo rever ou anular as leis existentes ou em projeto e que considere uma violação da Constituição, incluindo provisões sobre direitos humanos.

A Constituição de 2014 garantia que os membros do Tribunal seriam nomeados, em quotas iguais, pelo Presidente, Parlamento e HCJ. Mas este tribunal nunca entrou em funções devido ao contínuo desacordo na ARP sobre a designação dos seus representantes. O novo texto mantém o Tribunal, mas reduz os seus membros para nove e revê a forma como serão escolhidos.

O novo projeto não menciona diversas instituições estatais criadas pela Constituição de 2014 e que garantiam um estatuto independente, incluindo a Alta Autoridade para a Comunicação Audiovisual, a Comissão de Boa Governação e Anti-corrupção (INLUCC), a Comissão de Direitos Humanos e a Comissão para o Desenvolvimento Sustentável e Direitos das Futuras Gerações.

+++ Qual a função da religião no novo projeto constitucional? +++

 

Apesar de o islão deixar de ser mencionado como "religião de Estado", como previa a Constituição de 2014, o artigo 5º do novo projeto constitucional declara "a Tunísia como parte da Umma [Comunidade] Islâmica e cabe exclusivamente ao Estado trabalhar para atingir os objetivos do islão através da preservação da alma, honra, propriedade, religião e liberdade".

Esta menção do islão sugere a ação do Estado para a concretização dos valores islâmicos, em contraste com a menção do islão como religião de Estado prevista no texto de 2014. Apesar desta qualificação, a nova abordagem poderá ser utilizada para justificar restrições nos direitos, como a discriminação de género, com base em preceitos religiosos.

+++ Existem outras preocupações suscitadas pela reforma constitucional? +++

Em 20 de maio, o Presidente Saied anunciou que Sadok Belaid, um antigo professor de Direito constitucional, iria dirigir um comité para elaborar "uma nova Constituição para uma nova república". O comité submeteu o projeto à presidência em 20 de junho. No dia 30 de junho, o Jornal Oficial publicou o projeto de Constituição, ao indicar que seria submetido a referendo em 25 de julho.

Em 03 de de julho, Belaid denunciou publicamente o projeto publicado, ao referir não ser o texto preparado pelo seu comité. Em entrevista ao diário Le Monde, Belaid considerou que o Presidente deveria retirar o projeto, considerando-o "perigoso", "regressivo", e com uma "tendência para tiranizar o poder".

Diversas organizações não governamentais (ONG) tunisinas, incluindo a Associação Tunisina das Mulheres Democráticas (ATFD), o Fórum Tunisino para os Direitos Económicos e Sociais (FTDES) e o Sindicato Nacional dos Jornalistas Tunisinos (SNJT) manifestaram numa declaração conjunta as suas profundas preocupações sobre a regressão dos direitos democráticos e dos direitos humanos incluídos no projeto.

+++ Qual o significado de submeter a referendo o projeto desta Constituição? +++

A Constituição de 2014 foi o resultado de dois anos de um transparente processo de discussão, que envolveu juristas, partidos políticos e sociedade civil, antes da Assembleia Nacional Constituinte a ter aprovado em 2014.

A Constituição proposta por Saied foi elaborada por um painel cujos membros ele próprio designou, e que trabalhou durante quatro semanas à porta fechada, e com uma reduzida ou nula participação de outros setores. A divulgação do projeto próximo da data do referendo deixou muito pouco tempo para o debate público.

Em 27 de maio, a Comissão de Veneza, o organismo de consulta sobre lei constitucional do Conselho da Europa, considerou em relação ao atual processo em curso na Tunísia "não ser realista planear a realização de um referendo constitucional em 25 de julho de 2022 de forma credível e legítima".

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