"Vão matar-nos". O medo de quem fica para trás na retirada do Afeganistão

por Graça Andrade Ramos - RTP
Transferência da base militar norte-americana Camp Anthonic para o Exército Afegão a 4 de maio de 2021 Reuters

Cerca de 17.000 tradutores e intérpretes afegãos das tropas americanas e da NATO temem pelas próprias vidas e das suas famílias perante a possibilidade real do crescimento da influência dos Taliban nos próximos meses. A ameaça estende-se a milhares de outros civis que serviram as forças ocidentais ao longo de 20 anos de guerra.

Sabem que são alvos, considerados colaboradores, e que a retirada das tropas ocidentais até 11 de setembro irá levar consigo a segurança relativa de que têm beneficiado.Desde 2016 pelo menos 300 destes afegãos próximos das forças norte-americanas foram abatidos e os Taliban já prometeram que irão continuar a persegui-los.

“Vão matar-nos de certeza”, afirmou Mohammad Shoaib Walizada à Associated Press, AP, que entrevistou este antigo intérprete das forças dos Estados Unidos e outros, em Cabul, capital do Afeganistão, a quem já nem afeta a perda da escassa proteção do tradicional anonimato.

Exigem vistos de emigração para a América, que lhe garantam a sobrevivência, os quais são escassos e implicam um processo burocrático espinhoso. Tem sido extremamente difícil aceder-lhes.

Nem mesmo os que receberam medalhas e recomendações pelos serviços prestados em centenas de patrulhas e dezenas de combates, como Ayazudin Hilal, os estão a conseguir.

“Não estamos seguros”, lamentou à AP o pai de seis, de 41 anos, que viu recusado o pedido para ir com a família para os Estados Unidos e assim escapar à morte certa. “Os Taliban estão a ligar-nos e a dizer-nos o teu meio-irmão [os EUA] vai deixar o país em breve e nós vamos matar-vos a todos".

Consideram-nos literalmente inimigos do Islão”, explicou Matt Zeller, cofundador da ONG No One Left Behind (Ninguém Deixado Para Trás), que serviu no Afeganistão como oficial do exército dos EUA e agora procura apoiar os civis locais que serviram ou auxiliaram as tropas no terreno. “Não há misericórdia para eles”.

A ministra da Defesa da Alemanha, Annegret Kramp-Karrenbauer, prometeu em 18 de abril que nenhum dos atuais 300 intérpretes afegãos e outros civis junto das suas forças será "abandonado" sem proteção.

Desde 2013, a Alemanha já acolheu cerca de 800 civis afegãos, assim como 2.500 membros das famílias destes, devido ao risco que corriam por terem trabalhado para as forças estrangeiras.
Três anos para receber um visto
Os Estados Unidos impelementaram um programa especial de vistos chamado SIV, criado em 2009 para os civis iraquianos que trabalharam para os norte-americanos e cuja fórmula foi adaptada aos afegãos.

Ambos têm sido denunciados como demorados e complicados devido às exigências de segurança. A pandemia de Covid-19 ainda desacelerou mais os processos.

Os pedidos de SIV demoram atualmente mais de três anos a serem concedidos pelos serviços norte-americanos.

Membros do Congresso dos EUA, tanto republicanos como democratas, e antigos combatentes têm estado a exigir mais celeridade, de forma a responder numa questão de meses aos pedidos de quem ajudou os norte-americanos.O problema tem estado também a ser focado numa série cómica, a United States of AI, que foca o regresso a casa de um veterano da guerra do Afeganistão ao lado do seu intérprete, e que juntou forças com a No One Left Behind para criar no público consciência da gravidade do problema.

Um porta-voz do Departamento de Estado, Ned Price, disse na semana passada que o pessoal da embaixada de Cabul foi reforçado de forma a ajudar a processar os vistos.

Muitos dos candidatos aos SIV têm apoio no Congresso, até por terem ex-militares, que trabalharam com eles no terreno, a assumirem a sua defesa.
Serviço "fiel e valioso"
É o caso de Halil, que escutava as comunicações inimigas em Dari e em Pashtun e as traduzia para inglês. O major de artilharia Thomas Goodman, que lhe passou um louvor pela coragem debaixo de fogo e “serviço brilhante” acima “do de outros soldados”, diz que mantém a opinião. “Era confiável e a sua conduta admirável”, escreveu Goodman. “Mesmo quando os combates duravam horas a fio, ele nunca perdia o controlo e podia sempre contar com ele ao meu lado”.

Hilal, que serviu ao lado das tropas americanas entre junho de 2009 e dezembro de 2012, foi mesmo filmado ao lado de Goodman, a traduzir, entre aldeãos afegãos. O seu pedido de SIV, foi contudo rejeitado por ele ter sido despedido pela firma que o havia contratado.

As razões da dispensa ao fim de três anos e meio não foram explicadas pela empresa e Hilal diz somente que houve uma desavença quanto a um serviço. À embaixada dos EUA em Cabul, tanto bastou para rejeitar o pedido de SIV por Hilal não cumprir a exigência de “serviço fiel e valioso”.

“Se não tive um serviço fiel e valioso para o exército norte-americano, porque me deram esta medalha?”, quis saber Hilal, irritado com o argumento, mostrando a comenda durante a entrevista em Cabul. O seu pedido de revisão, o único a que tinha direito, foi igualmente rejeitado, apesar de 80 por cento das vezes resultar num avanço do processo.

Walizada apresentou por seu lado a carta de recomendação de um sargento do exército, com quem trabalhou em dezenas de patrulhas incluindo uma em que foi ferido por fogo Taliban. “Não recordo um linguista tão dedicado ao seu país e à causa da coligação”, escreveu o sargento.

O intérprete viu o seu pedido de visto aprovado e depois revogado, com os Serviços de Cidadania e Imigração norte-americanos a referirem "informação adversa que pode desconhecer". A resposta ao apelo de Walizada continua pendente.
Revisão dos SIV
O mês passado, o secretário de Estado Antony Blinken garantiu que a Administração Biden está apostada em ajudar os intérpretes e outros civis afegãos que ajudaram no esforço de guerra, muitas vezes com risco da própria vida.

O seu ministério anunciou que os programas SIV têm estado a ser revistos para analisar os atrasos e dar aos requerentes a possibilidade de contestar a rejeição. Também serão aplicadas medidas antifraude e outras alterações serão objeto de debate com as comissões do Congresso, “de forma a processar os pedidos da força mais rápida e eficiente possível”, referiu um responsável sob anonimato.

Terá também de ser garantida “a integridade do programa e a proteção da segurança nacional”, sublinhou a mesma fonte à AP.O Presidente Biden elevou este mês o limite das admissões de refugiados para 62.500, depois de meses de críticas generalizadas pela sua demora em rever em alta os tetos muito baixos impostos pelo antecessor, Donald Trump.

Apesar disso, os Estados Unidos não contam receber cidadãos afegãos em massa, não para já. “Estamos a processar SIV em Cabul e não temos planos de evacuação”, referiu o mesmo alto responsável da secretaria de Estado.

Em dezembro de 2020, o Congresso norte-americano emitiu 4.000 vistos, aumentando para 26.500 o número de afegãos que podem emigrar para o país com as suas famílias imediatas.
Proteção "evidente"
Dois mil desses vistos já foram utilizados e há pelo menos 18.000 pedidos à espera, um número que deverá aumentar drasticamente se a retirada levar ao caos no país, como se prevê.

Noah Coburn, um antropólogo político, referiu à AP que poderão existir cerca de 300 mil afegãos que trabalharam de uma forma ou de outra para as forças NATO ou dos EUA nestes 20 anos ade guerra.

Se não repensarem todo o processo não irão ajudar estes afegãos que mais precisam”, considerou Coburn, contestando também casos como o de Hilal, cuja avaliação demonstrou variações sobre a noção de serviço. “Ou serviram ou não serviram”, sublinhou.

“Existem muitos afegãos que não serão tolerados sob a ideia Taliban de como a sociedade deve funcionar”, refletiu por seu lado Adam Bates, conselheiro do Projeto Assistência ao Refugiado.

Sobre o caso de Hilal sublinha que ser defendido por um oficial devia ser tido em consideração. “Mesmo que não seja abrangido pelo programa SIV, parece ser alguém que precisa de proteção evidente”, afirmou.
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