Visão Global 2017: Daniela Nascimento

por Daniela Nascimento - Investigadora do Núcleo de Estudos para a Paz do Centro de Estudos Sociais e professora do Núcleo de Relações Internacionais da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra
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Personalidade do ano: Aung San Suu Kyi
Também por motivos menos positivos, destaco a líder de facto do Myanmar como figura do ano.

Contra tudo aquilo que se esperaria de alguém a quem foi atribuído o Nobel da Paz (1991) pela sua dedicação à luta pela liberdade, pelo respeito dos direitos humanos e contra a repressão no seu país e tendo ela própria sido perseguida e privada da liberdade, Aung San Suu Kiy tem negado sistemática e continuadamente, inclusive perante as evidências, qualquer envolvimento do governo birmanês na tragédia humanitária sofrida pelos Royinga e até negando a existência dessa mesma crise humanitária. De facto, Suu Kyi tem por várias vezes tentado desviar a atenção internacional da questão mais estrutural de exclusão e perseguição continuada contra a minoria muçulmana no país, referindo-se às ameaças crescentes do terrorismo e da pressão migratória no país e alegando que as forças militares apenas têm respondido a ataques por parte de ‘terroristas’ e rebeldes Royinga.

Esta actuação de Aung Suu Kyi, totalmente paradoxal com a sua condição de Nobel da Paz e que muitos explicam pelo facto de na prática se encontrar numa situação de vulnerabilidade e controlo por parte das estruturas militares que na prática decidem sobre os destinos do país, tem-lhe valido muitas críticas e colocado em cima da mesa um cenário que para muitos seria impensável: o de uma laureada com o Nobel da Paz que pode um dia vir a ser indiciada e condenada no Tribunal Penal Internacional por crimes contra a Humanidade ou mesmo crime de genocídio/limpeza étnica.

Acontecimento do ano: Crise humanitária no Myanmar
Longe de ser um problema novo, a perseguição e ataque sistemáticos à minoria muçulmana Royinga por parte das forças governamentais do Myanmar agudizou-se e ganhou novos contornos em agosto deste ano, tornando-se naquela que já foi considerada pelo Secretário-Geral das Nações Unidas, António Guterres, uma das maiores crises humanitárias da atualidade. De facto, estima-se que desde agosto, mais de 600.000 pessoas da minoria Royinga (de um total aproximado de 1 milhão de pessoas a viver no estado do Rakhine) tenham sido obrigados a fugir do país ou se encontrem deslocadas internamente, vítimas de perseguição e da violência governamental, procurando segurança e protecção em países vizinhos como a Tailândia, o Bangladesh ou a Malásia. De acordo com as autoridades birmanesas, as forças militares têm-se limitado a responder e reagir a vários ataques contra levados a cabo por militantes Royinga armados, mas é indiscutível que o que tem sido visível por parte do governo liderado por Aung San Suu Kyi é um aproveitamento desta desestabilização e uma clara falta de vontade política para reconhecer a condição de marginalização a que esta minoria tem sido votada e encontrar uma solução sustentável para a situação. Desde então, a comunidade internacional tem assistido, praticamente inerte, à escalada da violência, à deslocação forçada de milhares de pessoas e à perpetração, segundo um relatório recente da Amnistia Internacional, de crimes contra a Humanidade, nomeadamente violações em massa.

As dificuldades sentidas pela minoria muçulmana num país maioritariamente budista são antigas e historicamente reconhecidas, remontando pelo menos à ascensão ao poder da junta militar a partir dos anos 80, tendo-se materializado na negação continuada e sistemática de todo e qualquer direito fundamental aos Royinga, historicamente privados de direitos de cidadania e participação na vida económica, política, social e cultural do Myanmar e de certa forma confinados ao estado do Rakhine, numa espécie de regime de apartheid. Estudar, trabalhar, casar, viajar e professar a sua religião são direitos e liberdades historicamente negados aos Royinga.

Dada a dimensão dramática que tem assumido e a ausência de acção internacional forte e consistente por parte da comunidade internacional para pôr fim a esta crise humanitária – só agora os EUA, por exemplo, se referiram a esta situação como configurando uma possível ‘limpeza étnica’, este é a meu ver um acontecimento que marca o ano de 2017 pela negativa e por nos mostrar, uma vez mais, as consequências trágicas e desumanas da ausência de vontade política para actuar em contextos com pouco ou nenhum interesse político ou geopolítico. E que tão longe nos colocam dos princípios e valores de respeito pelos direitos humanos e pela dignidade humana que a mesma comunidade internacional diz respeitar e promover.
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