Visão Global 2017: Francisco Seixas da Costa

por Francisco Seixas da Costa - Diplomata, comentador de Assuntos Internacionais
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Personalidade do ano: Donald Trump
Pode parecer estranho escolher Donald Trump como personalidade mundial do ano. Mas haverá, mesmo por todas as más razões, uma outra figura que tenha marcado mais o cenário internacional em 2017?

Haverá alguém que condicione mais, nos dias de hoje, a sociedade política internacional, através da reorientação drástica da política americana, que rompeu com lógicas de continuidade que faziam parte das “constantes” na ordem global? Haverá alguém, à escala global, que tenha assumido um tão flagrante “revisionismo” do modelo de equilíbrio internacional existente, rompendo alianças, rasgando compromissos, desafiando a ordem multilateral, inviabilizando pactos regionais e colocando reticências em modelos de relação bilateral que eram eixos estruturantes do mundo?

Mas, mais importante do que tudo isto, quem, como Trump, trouxe para a linha da frente do debate a discussão de temáticas que pensávamos fazerem parte do património de conquistas civilizacionais - do clima ao tratamento dos refugiados e migrantes ou à proteção de minorias?

Donald Trump é um fenómeno novo. Novo pelo modo como conseguiu ascender à nomeação pelo Partido Republicano, cuja lógica de seleção de um candidato parecia ter regras que impediam que um “espontâneo” pudesse tomar conta da máquina partidária.

Novo pelo discurso populista que assumiu, ligando-se abertamente a uma narrativa assente numa leitura ambígua da realidade, dando à verdade uma leitura muito relativa. Novo pelo desprezo objetivo pela noção de separação de poderes, em moldes que retiram aos EUA qualquer margem de autoridade para servirem de “benchmark” legítimo a qualquer juízo de valor sobre práticas democráticas alheias. Donald Trump é, ele próprio, uma “revolução” no mundo, com um potencial perigo de contágio.
Acontecimento do ano: Eleição de António Guterres como secretário-geral da ONU
A perspetiva é portuguesa e, por isso, não nos pode ser indiferente a eleição de António Guterres para secretário-geral da ONU. Uma escolha que tem duas características importantes.

A primeira é o facto de ter ficado muito claro que a transparência no processo de seleção, destacando a qualidade, foi um método que veio para ficar e que reforça a legitimidade e o prestígio de quem assim é escolhido.

A segunda é que esta eleição coincide com um momento em que a política afirmada pela maior potência mundial revela um objetivo desprezo pela via multilateral, sempre que esta não funcione em estrito eco dos seus interesses.

A responsabilidade de um secretário-geral da ONU neste contexto é, assim, muito maior do que aquela que teria em tempos de “business as usual”. Para muitos países, nomeadamente para todos quantos acreditam numa ordem internacional tutelada por uma regulação democrática, o mundo está “raptado” por uma conjuntural agenda americana que debilita as soluções de natureza global, desestimulando os compromissos e favorecendo quantos são tentados a atitudes unilaterais ou protecionistas.

Um secretário-geral da ONU, eleito da forma aberta como foi, é um “provedor” do mundo contra as ameaças que o mundo multilateral sofre, exclusivamente por culpa dos EUA.
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